Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

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Mayne José (Fr.) Fr. José de Jesus Maria Mayne Porto Lisboa Frade e ministro-geral da Ordem Terceira de São Francisco, consultor e deputado da Bula de Cruzada, censor régio, capelão-mor da Armada, pregador e confessor de D. Pedro III. Sócio supranumerário. Fr.-Jose-Mayne.png Fr. José Mayne (1723-1792). Retrato a óleo atribuído a Joaquim Manuel da Rocha, c. 1780. Academia das Ciências da Lisboa. Ass_Fr.-Jose-Mayne.png

Natural do Porto, nasceu no dia 7.6.1723, sendo filho de António Dias de Carvalho e de Maria Mayne, foi batizado poucos dias depois na Igreja de São Nicolau, tendo como padrinho o cónego magistral da catedral portuense, Manuel dos Reis Bernardes. Seguiu a vida religiosa, tendo ingressado na congregação da Terceira Ordem de Penitência, a 19.3.1742, professando no Convento de Lisboa.

Figura dedicada ao estudo, lecionou no seio da sua Ordem, tendo sido mestre de Sagrada Teologia. Em 1757, é dada à estampa a sua primeira obra sob o título Declamação Evangelica e Panegyrica da Trasladação do Corpo de Santa Rosa de Viterbo, sendo declarado à altura como consultor da Bula de Cruzada e examinador da Mesa da Consciência e Ordens Militares. Veio a tornar-se uma figura próxima do Infante D. Pedro, futuro D. Pedro III, que o escolheu como pregador da sua capela, no Palácio da Bemposta. Cumularia estas funções com uma posição na Real Mesa Censória, tendo sido nomeado desembargador / deputado extraordinário deste órgão, a 29.10.1773. Foi ainda indigitado como deputado da Junta da Bula de Cruzada. Em 1776, é feito confessor de D. Pedro, conforme fica patente na carta da Chancelaria da Casa do Infantado, datada de 23.2.1776, a qual especifica que tal escolha tinha atendido às “virtudes letras e mais partes que concorrem na Pessoa do Padre Frey Joze Mayne” (ANTT, Livro de Chancelaria da Casa do Infantado, Casa do Infantado, liv. 28, fol. 25v). Viria ainda a ser feito capelão-mor das Armadas Reais após a ascensão de D. Maria I e D. Pedro III ao trono, por decreto de 21.4.1777. Permaneceu ligado ao rei-consorte, dedicando a D. Pedro a sua segunda e última obra, publicada em 1778. Seria Mayne a escrever por sua mão o testamento de D. Pedro III e as prescrições testamentárias do monarca, conforme este lhe transmitiu e confiou.

Grande parte da vida de José Mayne seria marcada pela sua atividade como censor, primeiro enquanto deputado da Real Mesa Censória e depois como deputado da Real Mesa da Comissão Geral para a Censura dos Livros, quando a primeira deu lugar a esta última por deliberação de D. Maria I, em 1787. A sua atividade como censor foi, naturalmente, enquadrada pelo zelo esperado dos censores régios que deviam impedir a disseminação de obras e ideias contrárias à ortodoxia católica e à Igreja, que conheceu no dinâmico período das Luzes a emergência e circulação de múltiplas correntes de pensamento contrárias e desafiadoras. Muitas dessas ideias e correntes de pensamento eram tidas pela coroa portuguesa como funestas, especialmente algumas das linhas tidas como mais “radicais” do Iluminismo. Graças ao parecer de Fr. José Mayne foram proibidas e censuradas as obras de autores como Robinet ou Helvetius, que propalavam o que chamava de “erros do materialismo” e a “perniciosa doutrina dos Novos Filósofos” (apud, Ferreira, 2018, p. 23), ideias que considerava como excessivamente perigosas por atentarem contra as bases da religião e ortodoxia católica, bem como contra a ordem política e social garantida pela monarquia. Esta linha, que guiava a conduta censória de Mayne, ficou também patente na sua obra Dissertação sobre a Alma Racional, dada à estampa em 1778, onde abordava precisamente várias ideias dos “Novos Filósofos” com que se defrontara, especialmente “o monstruoso erro do Materialismo” que, segundo Fr. José Mayne, havia sido por aqueles “desenterrado”. Mayne preocupa-se nesta obra em historiar o desenvolvimento das ideias materialistas desde a antiguidade até aos seus dias, com vista a refutá-las e a realçar a existência de uma tradição católica que contrariava tais posições, entretecendo a sua análise com um estilo polémico.

Para além da atividade censória, Mayne foi ainda chamado a tomar responsabilidades significativas no seio da sua Ordem, tendo sido eleito, no dia 8.4.1780, ministro geral da Terceira Ordem de Penitência de São Francisco, tornando-se assim no superior da comunidade franciscana do Convento de Nossa Senhora de Jesus. Destaca-se o importante papel que teve na construção da Livraria do Convento, projeto dispendioso para a Congregação, para o qual constituiu um fundo de rendimento, construindo casas na cerca do convento cujas rendas contribuiriam para a conclusão da obra e para a compra de livros. Mayne contribuiu também, de forma significativa, com a doação de livros e de meios advindos de heranças familiares e dos rendimentos que recebia da coroa, para as obras da Livraria e para o seu incremento.

As suas decisões à frente do convento e da Livraria não foram, porém, desprovidas de discordâncias e tensões. Algumas dessas decisões foram, por exemplo, alvo de críticas por D. Fr. Manuel do Cenáculo, que era então bispo de Beja, mas que fora anteriormente superior dos franciscanos do convento e o responsável primeiro pela refundação da biblioteca das Mercês após o Terramoto de 1755, a que Mayne deu continuidade, apesar deste ter entrado em rutura com Cenáculo, de quem se veio a afastar após a morte do rei D. José I e o fim do consulado de Pombal, com o qual D. Fr. Manuel do Cenáculo ficou muito conotado, enquanto Mayne se destacava pela proximidade ao novo casal reinante.

É também de sublinhar que, a par das obras da Livraria, Mayne deu um impulso decisivo à constituição de um museu ou gabinete de história natural, aproveitando as já existentes coleções legadas por Cenáculo, as quais Mayne foi aumentando ao longo de vários anos através da aquisição continua de “instrumentos phisicos” e de “couzas raras, e de Historia natural” (apud Carvalho, 1981, p. 30), recorrendo aos fundos e às doações que fizera para a edificação, expansão e aperfeiçoamento da Livraria. Fr. José Mayne dedicaria muito tempo e recursos ao continuo crescimento da coleção deste gabinete de história natural, que beneficiava ainda de doações e envio de espécimes vindos de muitas paragens, desde as florestas tropicais do Brasil até às estepes da Rússia, sendo estes remetidos por uma rede de colaboradores que Mayne congregara. Acresce que este museu contava ainda com ricos espólios de pinturas, medalhas e várias antiguidades, nos quais se coligiam desde medalhas e moedas romanas e egípcias, e as pinturas de Viera Lusitano e Rubens.

Os espécimes deste gabinete e os seus “instrumentos phisicos” adquiriram ainda grande protagonismo e tomaram um papel central na iniciativa de Mayne ao criar no convento de S. Francisco o que designou como “Escola Pública de História Natural Teológica”, que tomaria como material de apoio os objetos e espécimes do gabinete de história natural. Este desígnio de Mayne era motivado pelo desejo de ver ensinada a “Ciência da mesma História Natural com relação à Teologia, para que pelos Entes naturais se adquiram os conhecimentos dos Atributos divinos convencendo-se por este modo os Ateístas, Politeístas e mais Incrédulos” (apud, Brigola, 2009, p. 23). Assim, em sintonia com as posições que defendeu nas suas obras e na sua posição como censor, Fr. José Mayne idealizou a forma como o curso devia conciliar o estudo da ciência e história natural com o ensino e aplicação da teologia, com vista “a provar pela ordem admirável dos entes naturais contra os Ateístas e Politeístas a Existência de Deus” (Ibidem, p. 47).

Segundo estipulado por Fr. José Mayne na carta de instituição desta aula ou curso, datada 21.6.1792, este devia funcionar três vezes por semana e contar com um corpo de professores, preferencialmente recrutados entre os religiosos do Convento de Nossa Senhora de Jesus que para isso fossem capazes, os quais ensinariam tomando partido dos espécimes, instrumentos, antiguidades e outros objetos que Mayne congregara no seu gabinete. Ficou ainda patente que esta devia ser uma “escola pública”, cujas aulas não se destinavam apenas aos religiosos do convento, mas a todos quantos desejassem tomar parte nas aulas. Mayne tomaria ainda outra decisão de grande relevância com vista a garantir a permanência e sustentabilidade do museu e da escola de História Natural Teológica ao determinar que a sua administração deveria ficar a cargo da Academia Real das Ciências de Lisboa, que teria de garantir a sua perpetuidade. Mayne reconheceu, pois, que era “impossível que todos os Padres Gerais tenham a necessária eficácia e propensão para perpetuar uma Ciência, cujo ensino não está em uso dentro dos claustros” (apud Brigola, 2009, p. 47), pelo que o recurso à Academia seria indispensável para salvaguardar o futuro do projeto. Constate-se que Fr. José Mayne integrava havia vários anos a Academia, tendo sido eleito sócio supranumerário da então recém-formada agremiação, no dia 16.1.1780.

As disposições relativas ao destino do museu e do curso foram submetidas à coroa e vieram apenas a ser confirmadas a 24.12.1792, no dia que se seguiu à morte de Mayne. Ainda assim, Fr. José Mayne viveria ainda quando do início do curso por si instituído. Relata a Gazeta de Lisboa, que a 7.12.1792, poucos dias antes da morte de Mayne, foi inaugurada a aula de História Natural Teológica com uma “oração erudita” proferida pelo Pe. Fr. José da Costa Azevedo, o professor escolhido por Fr. José Mayne para ficar a cargo do curso, tendo assistido o duque de Lafões e outros membros da Academia. Nesse mesmo dia, a Academia Real das Ciências fez coincidir a abertura da aula de história natural nas Mercês com o início da Aula de Mineralogia, lecionada por Alexandre António das Neves Portugal no Palácio do Poço dos Negros, onde a agremiação se encontrava então sediada, aula essa que a par com as atividades realizadas no Concento de Nossa Senhora de Jesus permitia à Academia dinamizar semanalmente em Lisboa aulas em dois gabinetes naturalistas (Brigola, 2003, pp. 420-421).

Figura paradigmática do iluminismo católico português, a sua vida e ação é enquadrada pelo mesmo contexto que moldou outras figuras cimeiras da ilustração portuguesa, como Luís António Verney, Fr. Manuel do Cenáculo, ou Teodoro de Almeida. Fr. José Mayne demarcou-se pelo entusiasmo que nutria pela história natural e pelo importante contributo que legou às ciências através do museu e da aula que instituiu, que bem sinalizam a crescente importância que a história natural foi adquirindo ao longo do século XVIII. Personagem próxima do poder régio, zeloso defensor da ordem religiosa e política garantida pela proximidade entre o trono e o altar, grande parte do seu percurso e das decisões que tomou visavam o combate do que tomava como os “erros” que populavam o século e que acreditava poderem ter “horríveis e funestos efeitos”. Totalmente convencido da não existência de uma oposição entre a razão e a religião, mas antes uma complementaridade, bem como uma solidariedade entre ciência e religião, para Fr. José Mayne a ciência experimental coexistia e estimulava uma filosofia religiosa. Conforme bem deixou patente nas suas deliberações com vista à criação e destino do seu museu e aula, a coleção e o seu estudo tinham como objetivo último a contemplação da obra da criação e, por consequência, do Deus criador. Fr. José Mayne colocava-se, deste modo, na mesma linha de tantas outras figuras cristãs que marcaram o século das Luzes, podendo-se sublinhar neste caso a consonância do pensamento de Mayne com o de Domingos Vandelli, tendo este último afirmado numa sua Memória sobre a Utilidade dos Museus de História Natural que estes deviam, precisamente, congregar elementos que permitissem instruir o observador e fazê-lo admirar as “produções naturais”, tendo como fim a elevação e a contemplação do Criador, “a admirar, adorar e temer Aquele do qual estas têm a sua existência” (apud, Calafate, 1994, p. 87).

Fr. José Mayne faleceu no Convento de Nossa Senhora de Jesus, a 23.12.1792. Os Almanaques dão bem conta da continuidade do seu legado ao darem nota nos anos seguintes da existência, do “Museu Maynense, no qual há Aula pública de História Natural, e Botanica instituída pelo P. Fr. José Mayne” (Almanch para o anno de 1795, Parte VI, p. 23). Anos depois, após a extinção das ordens religiosas em 1834, instalou-se a Academia Real das Ciências de Lisboa no Convento de Nossa Senhora de Jesus, onde passou a dispor de grande parte do espaço do antigo convento, incluindo a rica e faustosa Livraria edificada sobre a administração de Fr. José Mayne. Deu-se também então a fusão do gabinete de História Natural da Academia com o museu de Mayne, bem como uma revitalização e reforma do curso de história natural administrado no antigo convento, o qual por deliberação da Academia, passou a focar-se no estudo de zoologia a partir de finais de 1836. A memória de José Mayne perpetua-se até hoje, precisamente, nos espaços do Museu Maynense e da Aula Maynense na Academia das Ciências de Lisboa.

Declamação Evangelica e Panegyrica da Trasladação do Corpo de Santa Rosa de Viterbo, Lisboa, Na Officina de Mifuel Manescal da Costa Impressor do Santo Officio, 1757; Dissertação sobre a alma racional, onde se mostrão os sólidos fundamentos da sua imortalidade e refutão os erros dos materialistas antigos, e modernos, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, 1778. AH-ACL, Processo académico, PT/ACL/ACL/C/001/1780-01-16/JM; ANTT, Livro de Chancelaria da Casa do Infantado, Casa do Infantado, liv. 28, fol. 25v.; ANTT, “Registo de leis, decretos e avisos recebidos pela Mesa”, Real Mesa Censória, liv. 1, pp. 53-54; Arquivo Distrital do Porto, Paróquia de São Nicolau, Registos de Batismo, livro 10 (1713-1730), cota: E/21/2/4 - 16.2, fol. 79v.; Arquivo Histórico da Marinha, Livro Mestre da Corporação dos Oficiais da Marinha - Livro 1, fol. 10; Almanch para o anno de 1795, Lisboa, Na Off. Da Academia Real das Sciencias, 1795; BRAGA, Paulo Drumond, D. Pedro III. O rei esquecido, Lisboa, Círculo de Leitores, 2013; BRIGOLA, João Carlos, Colecções, gabinetes e museus em Portugal no século XVIII, Fundação Calouste Gulbenkian – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2003, pp. 414-422; BRIGOLA, João Carlos, Coleccionismo no século XVIII. Textos e documentos, Porto, Porto Editora, 2009; CALAFATE, Pedro, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994; CALAFATE, Pedro, História do Pensamento Filosófico Português, vol. III – As Luzes, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002; CARVALHO, Rómulo, A história natural em Portugal no século XVIII, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987; CARVALHO, Rómulo de, O material didático dos séculos XVIII e XIX do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1993; FERRÃO, António “Frei José Mayne. A sua cultura e sua benemerência”, Boletim da Academia das Sciências de Lisboa, Nova Série, vol. II, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, pp. 446-464 e 593-600; FERREIRA, Breno Ferraz Leal, Economia da natureza. A História Natural, entre a Teologia Natural e a Economia Política (Portugal e Brasil, 1750-1822), dissertação de doutoramento em História apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016; FERREIRA, Breno Ferraz Leal, “A Teologia Natural na Cultura Científica da Ilustração Portuguesa: Oratorianos e Franciscanos (1750-1800)”, Revista de História (São Paulo), nº177, 2018, pp. 1-31; FRANCO, Matilde Sousa, D’ALCOCHETE, Nuno Dapiás, “Fr. José Mayne. Um colecionador do tempo das Luzes”, in Vieira Lusitano (1699-1783). O desenho, coordenação Luísa Arruda e José Alberto Seabra de Carvalho, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, pp. 191-193; MARTINS, Francisco de Assis de Oliveira, Fr. José Mayne colaborador de Diogo Inácio de Pina Manique na Fundação da Casa Pia, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, 1961; MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan, A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2005; MARTINS, Teresa Payan, “Frei José Mayne: um coleccionador do século XVIII”, in Tratar, estudar, disponibilizar. Um futuro para as bibliotecas particulares, coordenação Vanda Anastácio, Lisboa, Banco Espírito Santo – Centro de História, 2013, pp. 71-78; VAZ, Francisco António Lourenço, “A Biblioteca do Convento de Jesus (1755- 1834): a herança de D. Frei Manuel do Cenáculo”, in As Bibliotecas e o Livro nas Instituições Eclesiais. Actas II e III Encontro, Moscavide, Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja, 2013, pp. 133-149. Gonçalo Vidal Palmeira Sócio supranumerário.