Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

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HaüyRené Just deAbade Haüy; Renato Justo de HauySaint-Just-en-Chaussée, Oise, FrançaParis, FrançaCristalógrafo e mineralogista francês. Professor de Mineralogia do Muséum National d’Histoire naturelle, da Ecolle normale, da Ecolle des mines e da Sorbonne. Cónego honorário de Notre-Dame e cavaleiro da Legião de Honra. Socio correspondente estrangeiro.A2-Rene-Hauy.pngRené-Just Haüy (1743 - 1822). Gravura de Ambroise Tardieu (1788-1841), c. 1880, https://tinyurl.com/3jp8ceks (4/12/2023).

Filho primogénito de Just Haüy e de Madeleine Candelot, nasceu no seio de uma família de tecelões de linho, provida de escassos recursos, em Saint-Just-en-Chaussée, 80 km a norte de Paris, um burgo que emergiu e foi crescendo em torno de uma abadia premonstratense, local de peregrinação em honra de S. Justo, a lendária criança-mártir.

A profunda devoção de Haüy e o seu interesse pela música levaram-no, enquanto criança, a assistir assiduamente aos serviços religiosos, chamando a atenção do prior da abadia dos cónegos regulares premonstratenses, vizinha de Saint-Just. Aquele religioso acabou por se aperceber das qualidades intelectuais da criança, levando-o a confiar a sua educação aos monges da abadia. Foram notáveis os progressos de René-Just, o que levou o prior premonstratense a procurar convencer a mãe dele a levá-lo para Paris, para que pudesse avançar numa boa educação clássica e teológica. Convencida pelos mestres do seu filho, acabou por rumar a Paris, mas o melhor que René-Just conseguiu foi um lugar de menino do coro na igreja de Saint Paul.

De longe, os seus mestres premonstratenses acompanhavam com interesse o jovem formando, acabando por lhe obter uma bolsa do Colégio de Navarra. Concluídos os seus estudos, dado o apreço de que era credor, permaneceu no colégio como mâitre de quartier. Tinha múltiplas funções, desde zelar pelas horas de levantar e de deitar (correntemente, às cinco da manhã e às nove da noite), atuar como repetidor das lições, enfim, acompanhar de muito perto os domestici. Em 1764, obtidos os seus graus académicos, tornou-se regente de quatrième, ou seja, de gramática, naquele colégio.

Ao longo deste período de formação clássica e estudos religiosos, a sua apetência pelo estado eclesiástico foi-se concretizando: em 1762, a primeira tonsura clerical; em 1765, ordens menores; em 1767, subdiaconato; em 1769, diaconato; em 1770, lettres de prêtrise, atestando a sua qualidade de padre. Em 1768, o duque de Villeroy, senhor de Oyron, nomeou-o cónego da igreja colegial de Saint-Maurice de Oyron, beneficiando, assim, de uma prebenda.

Da sua regência no Colégio Navarra transferiu-se para o Colégio Cardeal Lemoine, como regente de seconde, isto é, de latim. Aí, encontraria um outro regente, Charles Lhomond, em quem encontrou uma enorme conformidade de caráter, tornando-se seu indefetível amigo, adotando-o como seu diretor espiritual. Lhomond era um apaixonado botânico amador, o que levaria René-Just a procurar estabelecer mais essa ligação com o seu amigo. Tal ser-lhe-ia proporcionado durante umas férias à terra natal, onde encontrou um monge, também botânico amador, o que lhe deu o ensejo de se iniciar nessa ciência. De regresso a Paris e à companhia de Lhomond, na sua primeira recolha de plantas, René-Just surpreendeu o amigo, ao designar, na nomenclatura lineana, a maioria das plantas amostradas. Nascera em René-Just o naturalista: não só fez um herbário com 1500 a 1800 plantas como desenvolveu um procedimento de dessecação das plantas sem que as flores perdessem a cor, tendo enviado à Académie uma nota intitulada Observations sur la manière de faire les herbiers.

Haüy tornou-se um visitante habitual do Jardin du Roi, vizinho do Colégio Cardeal Lemoine. O latim deixava de lhe interessar, ao ponto de, no início de 1776, ter escrito ao químico e académico Pierre-Joseph Macquer, oferecendo os sus préstimos para a realização de experiências. Nas suas incursões pelo Jardin du Roi, ser-lhe-iam familiares as multidões que acorriam a ouvir as lições de Louis-Jean-Marie Daubenton. Um dia decidiu acompanhar a multidão a uma lição de mineralogia daquele mestre e, imediatamente, viu naquele domínio uma proximidade com a física que tanto o comprazia.

Intrigou-o a simplicidade geométrica das formas dos cristais e a sua variedade. Tal contrastava com a complexidade e invariabilidade das formas vegetais e interrogava-se sobre o facto de “a mesma pedra, o mesmo sal” ocorrer ora “em cubos, ora em prismas, ora em agulhas”, enquanto “uma flor tem sempre as mesmas pétalas, uma bolota, a mesma curvatura”. A mineralogia carecia de uma teoria sobre a estrutura dos cristais.

Conta Haüy que, um dia, ao examinar um cristal prismático de calcite que um amigo lhe mostrava, depois de ele se ter partido e separado de um grupo de cristais, reparou numa superfície de rotura, única, plana e brilhante. Fraturando repetidamente esse cristal, obteve novas superfícies de rotura, até que o prisma se reduziu a um núcleo romboédrico em tudo semelhante aos cristais do espato de Islândia. Atuando, depois, sobre um cristal escalenoédrico daquele mineral, obtém igual núcleo romboédrico, assim como, a partir de um cristal de calcite lenticular. Surpreso, apercebeu-se da importância da sua descoberta. A divisão mecânica daquele núcleo originava romboedros cada vez mais pequenos que, em limite, corresponderiam às unidades estruturais (moléculas integrantes), de cujo empilhamento em camadas resultariam os cristais. Haüy repetiu a experiência com outros minerais, até se convencer da universalidade da sua observação, decidindo-se a comunicar a sua descoberta a Daubenton. Este apressou-se a transmitir as ideias de Haüy a Pierre-Simon Laplace, que, apercebendo-se da sua importância, convenceu Haüy a fazer uma comunicação à Academie des Sciences. Tal ocorreria em 10.01.1781, sendo as memórias entusiasticamente recebidas pela Academia, Sur la structure des cristaux de grenat e Essai d’une théorie sur la structure des cristaux appliquée à plusieurs genres de substances cristallisées, apresentadas por Daubenton e por Étienne Bezout. foi reconhecendo, nos mais diversos minerais, diferentes núcleos e moléculas integrantes, o que permitia distingui-los e explicar e prever a diversidade das suas formas.

Em 12.02.1783, foi eleito para a Académie des Sciences, na Classe de Botânica, à falta de vaga entre os físicos. No fim do mesmo ano, publica o seu primeiro livro, Essai d’una théorie sur la strucure des cristaux.

Em 1784, reformou-se da Universidade, conforme, após 20 anos de serviço, permitiam os regulamentos, obtendo uma pensão de emérito.

Em 23.04.1785, beneficiou de reforma do estatuto da Academia, passando a uma nova classe, a de História natural e de Mineralogia.

Haüy prosseguia placidamente a sua vida sedentária, no seu quarto do Colégio Cardeal Lemoine, embrenhado no seu trabalho de investigação. Assim o apanhou, imperturbado, a Revolução (1789-1799), período de frequentes convulsões políticas e sociais.

Em 8.08.1793, foram dissolvidas as academias reais, com grande perda financeira para Haüy, não só da parte da Academia, como da sua reforma universitária e da pequena prebenda de cónego da igreja de Saint-Maurice d’Oyron.

Fiel aos seus princípios, recusou jurar “ser fiel à nação, à lei e ao rei”, conforme determinava a lei da Constitution civile du clergé, de 12.07.1790. Na sequência da queda da monarquia (10.08.1792), os padres não ajuramentados foram considerados suspeitos e Haüy foi detido. Acabou por ser libertado em 15 de agosto, após intervenção de Étienne Geoffroy e Daubenton. No entanto, o seu prestígio determinou a sua entrada em muitas instituições criadas por sucessivas governações, da Convenção, ao Diretório, ao Consulado e ao Império.

Foi membro da Commission temporaire des Poids et Mesures et du Système métrique (1793) e professor de física da École normale de l’an III, fundada pela Convenção em 30.10.1794. Foi ainda membro do Institut National des Sciences et des Arts, criado 22.08.1795 em substituição da Académie Royale des Siences, tendo sido nomeado pelo Diretório para a Secção de História natural e Mineralogia.

Professor de mineralogia e de física da Écolle des Mines (Hôtel de Mouchy), criada em 19.03.1783, onde passa a residir, é depois nomeado professor, em 1802, no Muséum national d’Histoire naturelle, à morte de C. Dolomieu, passando a morar no Jardin des Plantes, auferindo 5 000 francos por ano.

Já nos tempos do Primeiro Império, em 14.04.1809, na Faculdade de Ciências de Sorbona, foi criada e oferecida a Haüy a cadeira de Mineralogia, que ele aceitou na condição de permanecer como professor do Museu.

Gozou, sempre, do apreço de Bonaparte que, em1802, lhe solicitou uma “obra elementar para a classe de matemáticas dos Liceus nacionais”, o que Haüy rapidamente cumpriu com a publicação do Traité élémentaire de physique. Entretanto, em 5.04.1802, o cônsul fê-lo nomear cónego honorário da metrópole. Aquela obra foi tão agrado de Bonaparte que, em 1803, fez Haüy membro da Légion d’Honneur. Mais tarde, numa visita ao Museu, em 1815, afirmou que a tinha levado consigo para o exílio na ilha de Elba, onde “a relera com muito interesse”. Sob a Restauration, Haüy viria a perder a sua pensão.

Foi eleito sócio correspondente estrangeiro da Academia Real das Ciências de Lisboa na sessão ordinária de 15 de dezembro de 1813.

No sábado, dia 1.06.1822, caiu no seu quarto do Jardin du Roi e fraturou o colo do fémur, sobrevindo uma infeção fatal. Morreu pobre, mas possuidor de uma notável coleção de minerais (10 000 a 12 000 amostras) que os sobrinhos, seus herdeiros, tendo recusado a oferta oficial de 40 000-50 000 francos, acabaram por vender ao duque de Buckingham, por 100 000 francos. Em 1848, viria a ser recomprada para o Muséum nationale aos herdeiros do duque. Deixou-nos, ainda, um acervo de livros, memórias e notícias (c. 140 trabalhos científicos).

“Sur la structure des cristaux de grenat”. Présenté à l’Académie des Sciences, le 21 février 1781. Journ. de Phys., 19, part 1 (Mai): pp. 366-370. 1782; Essai d’une théorie sur la structure des cristaux, apliquée à plusieurs genres de substances crystallisées, Paris, Chez Gogué & Née de la Rochelle, Libraires, 1784; “Mémoire où l’on expose une méthode analytique pour résoudre les problèmes relatifs à la structure des cristaux”, Mém. de l’Ac. des Sc., pp. 13-33. 1788; “Théorie sur la structure des cristaux”, Journ. de Phys., 43, parte 2 (Août), pp. 103-145. 1793; “Exposé d’une méthode simples et facile pour représenter les formes crystallines par des signes três abrégés qui expriment les lois de décroissement auxquelles est soumise la structure”, Journ. des Mines, 4, pp. 15-36. 1796; Traité comparatif des résultats de la cristallographie et de l’analyse chimique relativement à la classification des minéraux, Paris: Chex Courcier, Imprimeur pour les mathématiques, 1809; Traité de Minéralogie, 4 vols. e atlas. 1801, reeditado em 1822-3; Traité élémentaire de physique destiné pour l’enseignement dans les Licées nationaux, 2 vols, Paris, Delance et Lesueur, 1803, reeditado em 1806 e 1821.Processo Académico, AH-ACl, PT/ACL/ACL/C/001/1813-12-15/RJH; Boris N.,“L’encadrement pédagogique et disciplinaire dans les collèges d’humanités en France du XVIe au XVIIIe siècle”, Paedogogica Historica, 47(3), 2011, pp. 243-262; Castagnet-Lars, V., “L’histoire des élèves en France du XVIe au XVIIIe siècle: des acteurs dans l’ombre des institutions scolaires”, Hist. de l’éducation, 150, 2018, pp. 35-72; Cuvier, G., “Éloge historique de Haüy lu le 2 juin 1823”, Recueil des Éloges historiques lus dans les séances de l’Institut de France, Tome deuxième, Paris, Libraire de Firmin Didot Frères, Fils et Cie. 1861, pp. 255-292; Encyclopédie des gens du monde, répertoire universel des sciences, des lettres et des arts, Tome 13, 2.ª Parte, Paris, Libraire de Treuttel et Würtz, pp. 527-529; Lacroix, A., “Discours prononcé à l’inauguration du monument Haüy”, Bull. Soc. Franç. Min., 26(7), 1903, pp.158-162; Lacroix, A., “La vie et l’oeuvre de l’abbé René-Just Haüy”, Bull. de Minéralogie, 67, 1-6, 1944, pp. 15-226; Michel, L., “Discours prononcé à l’inauguration du monument Haüy”, Bull. Soc. Franç. Min., 26(7), 1903 pp.154-157; Pizzetta, J., Dictionnaire populaire illustré d’histoire naturelle, Paris, A. Hennuyer, Imprimeur-Éditeur, 1890; Schuh, C. P., Mineralogy & crystallography: an annotated biobibliography of books published 1469 through 1919, Tucson. Vol. 1: pp. 673-682, 2007 (https://tinyurl.com/mr3xce74, ((18.9.23); Touret, L “Relations parisiennes et internationales de René-Just H,aüy”, Rev. Hist. Sci., 50(3), 1997, pp. 303-334.Frederico Sodré BorgesFrancesaSócio correspondente estrangeiro.Ciências naturais