Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

DHB

MeloPascoal José dePascoal José de Melo Freire dos ReisAnsiãoLisboaJurisconsulto, professor da Universidade de Coimbra, desembargador dos Agravos da Casa da Suplicação. Sócio efetivo na classe de Literatura Portuguesa.Pascoal-dos-Reis.pngPascoal José de Melo Freire dos Reis (1738-1798). Retrato a óleo, Arquivo Municipal de Ansião.

Filho de Faustina Freire de Melo e de Belchior dos Reis, Melo Freire estudou Direito Civil na Universidade de Coimbra. Depois de se doutorar (1757), permaneceu em Coimbra e ocupou interinamente diversas cátedras como professor. Ingressou no Colégio das Três Ordens Militares em 1763 e, em 1765, candidatou-se sem êxito à regência da disciplina de Vésperas. Em 1772 foi escolhido para docente substituto da recém-criada disciplina de Direito Pátrio e em 19 de janeiro de 1780 tornou-se membro supranumerário da Academia Real das Ciências de Lisboa. Alcançou a cátedra em 1781 e, nos anos que se seguiram, foi sendo nomeado para vários cargos: deputado da Bula da Cruzada (1783) e, em 1785, deputado da Mesa Prioral do Crato, provisor do mesmo Priorado, deputado da Assembleia da Ordem de Malta e desembargador dos Agravos da Casa da Suplicação. Em 1786 foi eleito deputado da Casa do Infantado e, no ano seguinte, deputado da Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros. Em 1790 aposentou-se da Universidade e, em 1.4.1791, foi eleito sócio efetivo na classe de Literatura Portuguesa da Academia Real das Ciências de Lisboa. Em 1793, foi nomeado deputado do Conselho Geral do Santo Ofício e, nesse mesmo ano, recebeu o título do Conselho de Sua Majestade.

Pascoal de Melo Freire é autor de uma obra jurídica e política plenamente inserida no contexto da Ilustração e do pombalismo. O seu pensamento relaciona-se diretamente com duas das principais medidas do conhecido ministro de D. José I. Em primeiro lugar, a que se designou como Lei da Boa Razão, que redefiniu as fontes do Direito português da época num sentido legalista, racionalista e fortemente crítico da centralidade que o anterior sistema concedia à tradição jurídica romanista. Em segundo lugar, a reforma da Universidade (1772). Seguindo as tendências mais gerais na Europa, estas duas reformas conferiram uma grande importância ao que então se chamava direito pátrio. A primeira, reforçando o seu primado sobre todas as outras fontes do Direito e a segunda, instituindo uma formação jurídica centrada nas normas escritas produzidas em Portugal, encarando-as como a principal manifestação do poder régio. A par disso, repudiou o uso, na lecionação, dos comentários e das glosas, sobretudo as que tinham por objeto normas romanistas, e favoreceu a sua substituição por compêndios, então designados por códigos, género de literatura jurídica muito em voga na Europa daquele tempo.

Foi só a partir de 1786 que se começaram a produzir, em Portugal, os manuais que concretizavam esta nova orientação, e Pascoal de Melo Freire foi autor de alguns dos mais destacados: Historiae Juris Civilis Lusitani (1788); Institutiones Juris Civilis Lusitani, cum Publici tum Privati (4 volumes, 1789-1793) e Institutionum Juris Criminalis Lusitani (1794).

Na linha do que determinava quer a reforma pombalina da universidade quer, antes dela, a Lei da Boa Razão (1769), Melo Freire via na lei positiva e escrita não só a expressão da vontade régia, mas também a fonte por excelência do Direito. Também ele encarava o código como a melhor forma de expor esse novo entendimento na normativa vigente. Além disso, ao conceber os seus compêndios, Melo Freire seguiu de perto as tendências de outros pontos da Europa e inspirou-se na escola jurídica conhecida como usus modernum pandectarum, a qual sustentava que o direito romano devia ser interpretado recorrendo ao direito natural e ao direito próprio de cada reino. Ao mesmo tempo que conferia primazia ao direito pátrio, Melo Freire rejeitava as fontes de direito de natureza espontânea ou de difícil controlo, a autoridade do motu proprio da communis opinio, a rigidez dos textos dos glosadores e, ainda, a influência determinante que o ius commune continuava a exercer no ordenamento jurídico.

Esta maneira de praticar a hermenêutica estava relacionada com o modo como Melo Freire estudou a lei e a sua evolução histórica. Na Historiae Juris Civilis Lusitani, Melo Freire centrou-se na regulação da vida coletiva em Portugal ao longo da história, ou seja, naquilo que então era entendido como a normativa civil. Na secção intitulada “Instrução das Regras de Interpretação”, defendeu que, na feitura de leis, era imperioso possuir um domínio tão rigoroso quanto possível da história da legislação para nela identificar o que era particular dos portugueses. Só assim se conseguia definir qual era a melhor normativa para os reger. A história também tornava evidente que o poder de definir o que era o direito cabia ao soberano ou àqueles a quem este havia dado a faculdade de o interpretar.

Delineado o panorama histórico das leis vigentes no território português, nas Institutiones Juris Civilis Lusitani , Melo Freire apresentou a sua visão do sistema político que vigorava em Portugal no último quartel de Setecentos. Começou por definir o que era o direito público; estabeleceu aquilo que considerava ser a distinção entre o direito público e o direito privado; tratou da faculdade de criar leis, reiterando que essa faculdade pertencia privativamente ao príncipe; e, além disso, identificou os vários géneros de leis que então existiam, bem como a sua diferente força obrigatória. No que toca ao ius commune, e seguindo de perto o que tinha sido definido na Lei da Boa Razão, rejeitou a sua autoridade no espaço jurisdicional português e circunscreveu o direito canónico a matérias da igreja. Quanto aos costumes, negou força obrigatória àqueles que estavam em concorrência ou em conflito com a lei emanada do Príncipe, embora admitindo a sua vigência na ausência de lei escrita. Por último, e seguindo igualmente o determinado na Lei da Boa Razão, descartou a força obrigatória dos casos julgados, da opinião da doutrina, dos exemplos e, ainda, dos estilos e da praxis dos magistrados.

Já na obra Institutiones Juris Criminalis Lusitani, Melo Freire inspirou-se em Gaetano Filangieri e em Cesare Beccaria, ambos defensores de moderação na aplicação das penas e críticos da tortura. Como notou Mário Júlio de Almeida e Costa, Melo Freire afastou a sanção jurídico-penal da prática da vingança e, para além disso, sustentou que as penas só podiam ser impostas por aquele que tinha o poder de obrigar: o Príncipe.

Em 1783, Melo Freire integrou a equipa responsável pela reforma das Ordenações filipinas. Iniciativa de D. Maria I, esta reforma visava identificar as normas que deveriam ser substituídas por leis extravagantes e suprimir as que tinham caído em desuso ou que levantavam dúvidas de interpretação. Melo Freire foi designado para rever o Livro II (direito da Coroa e da administração) e, adicionalmente, o Livro V (direito criminal) das Ordenações. Nesse contexto, elaborou um projeto intitulado "Código de Direito Público" e outro denominado "Código Criminal". Para os avaliar foi estabelecida uma Junta de Censura e Revisão (3 de fevereiro de 1789). O "Código de Direito Público", foi duramente criticado por um dos integrantes dessa junta, António Ribeiro dos Santos, professor de Direito Canónico em Coimbra. Nas “Notas ao Novo Código”, Ribeiro dos Santos criticou a ausência de uma série de leis e lembrou que as Ordenações eram, em grande medida, ius commune, e que este era necessário para a sua compreensão. Porém, Ribeiro dos Santos insurgiu-se, acima de tudo, contra o facto de o “Código” não contemplar osdireitos, os foros e as liberdades dos povos e de ser insensível à complexidade social, jurisdicional e política do corpo político. Para Ribeiro dos Santos, Melo Freire defendia um poder régio demasiado absoluto e desconsiderava a capacidade política dos diversos corpos sociais. Do seu ponto de vista, a prerrogativa régia deveria ser calibrada com o peso político das várias ordens sociais e corporações e limitada pela estrutura corporativa da sociedade e pelas leis fundamentais do reino.

A resposta de Melo Freire foi contundente. Ressalvando que não era contrário à colaboração entre o rei e os corpos do reino, reiterou que a faculdade legisladora era privativa do Príncipe e que este não tinha qualquer obrigação de consultar as Cortes. Afirmou, socorrendo-se de uma terminologia típica do pensamento mais conservador da época, que “o chamado pacto social é um ente suposto, que só existe na cabeça e imaginação alambicada de alguns filósofos”. Acerca da capacidade política da nobreza, declarou que tinha tratado dessa questão segundo “o espírito das Leis do Reino e com aquela moderação, que pede a constituição particular da nossa monarquia”. No essencial, reafirmou que, em Portugal, a monarquia era “pura e absoluta”, fundada na conquista e na hereditariedade do poder do Príncipe.

Tanto nos escritos de Melo Freire, quanto nas “Notas” de Ribeiro dos Santos, o vocabulário tradicional reveste-se de uma nova semântica, sobretudo por meio do uso de palavras como "vassalo”, “cidadão”, “nação”, “constituição” e “estado”. De qualquer modo, o projeto de Código do Direito Público acabou por ser posto de lado e Melo Freire faleceu pouco tempo mais tarde (1798). Quanto à proposta de Código Criminal, nem chegou a ser discutida. Os dois projetos só foram publicados postumamente: o código criminal em 1823 e o código de direito público em 1844.

Como notou António M. Hespanha, a polémica entre Melo Freire e Ribeiro dos Santos reflete duas visões diferentes da ordem político-jurídica. Para Ribeiro dos Santos, os direitos eram anteriores à lei positiva, radicavam no ordenamento estabelecido da sociedade, formado ao longo da história, ou estavam inscritos na ordem da natureza tal como Deus a tinha concebido. Já para Melo Freire, os direitos que conformavam o Estado eram uma ordem jurídica positiva. Conhecer a sua trajetória histórica era crucial pois, na linha do que havia proposto Montesquieu, tal permitia identificar o “génio” dos portugueses e compreender aquilo que lhes era peculiar, possibilitando, assim, a formulação das normas mais adequadas ao seu governo. Como vimos, para Melo Freire, tal tarefa competia ao soberano ou àqueles em quem o rei a delegava. A sua obra consagra, portanto, não só o primado do direito da monarquia, mas também a ideia de um ius publicum exclusivo da administração da coroa. As raízes doutrinais canónicas do ius commune são por ele claramente postas de lado e o ius canonicum é reduzido à condição de direito particular da Igreja.

Nos anos que se seguiram ao surgimento das suas obras, o poder régio legislou com abundância. Em paralelo, prosseguiram as investigações históricas tendo em vista encontrar no passado títulos para fundar as pretensões regalistas. Seja como for, e a despeito desta dinâmica e da contundência das tomadas de posição de Pascoal de Melo Melo Freire, o ius commune revelou-se muito perene, o que reduziu a eficácia do direito pátrio no terreno.

Historiae Juris Civilis Lusitani liber singularis, Olisipone, ex Typographia Regalis Academiae Scientiarum Olisiponensis, 1788; Institutionum Juris Civilis Lusitani, cum Publici tum Privati, [4 tomos], Olisipone, ex Typographia Regalis Academiae Scientiarum Olisiponensis, 1789 - 1793; Institutionum Juris Criminalis Lusitani jussu Acad. Reg. Scientiarum in lucem editus, liber singularis, Olisipone, ex Typographia Regalis Academiae Scientiarum Olisiponensis, 1794; Dissertação historico juridica sobre os direitos e jurisdicção do Grão Prior do Crato, e do seu provisor. Ordenada para seu uso particular, no anno de 1786, etc., Primeira edição correcta e annotada pelo mesmo editor, e à sua custa. Lisboa, na Impressão Regia, 1808; Resposta de Paschoal José de Mello contra a censura do compendio Historia Juris Civilis Lusitani, feita por Antonio Pereira de Figueiredo, deputado da extincta Real Meza Censoria, Lisboa, na Impressão Regia, 1809; Pro Litterarum instauratione dixit Paschalis Josephus de [1775]; Sexto Nonas Octobris, Apud Conimbricensem Academiam, Postumum, Olisipone, ex Typis Regiae Officinae 1809; Allegação juridica feita em Coimbra no anno de 1782 (...). Tirada á luz por seu sobrinho Francisco Freire de Mello, e por ele correcta e annotada, Lisboa, na Typ. Rollandiana, 1816; Ensaio do Codigo Criminal, a que mandou proceder a rainha D. Maria I, Lisboa, na Typographia Maigrense, 1823; Novo Codigo do Direito Publico de Portugal, com as provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a materia do Livro II. das actuaes Ordenações. Primeira edição; “Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis ás censuras, que sobre o seu plano de Novo Codigo de Direito Publico de Portugal fez, e apresentou na Junta de Revisão o Dr. Antonio Ribeiro dos Santos”, in SANTOS, António Ribeiro dos, Notas ao plano do Novo Codigo de Direito Publico de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro [dos Santos] em 1789, Coimbra, na Imprensa da Universidade, 1844, pp. 60-112. Processo Académico, AHA-ACL, PT/ACL/ACL/C/001/1780-01-19/PJM; Costa, Mário Júlio de Almeida, História do Direito Português, 5.ª ed. revista e atualizada, Coimbra, Edições Almedina, 2018; Fernades, Filipe Marques, “Freire, Pascoal de Melo (Ansião, 1738 – Lisboa, 1798)” in Sérgio Campos Matos (coord.), Dicionário de Historiadores Portugueses, 2016. URL: https://dichp.bnportugal.gov.pt/imagens/melo_freire.pdf; Hermann, Jacqueline, Azevedo, Francisca L. Nogueira de & Catroga, Fernando (orgs.), Memória, escrita da história e cultura política no mundo luso-brasileiro, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2012; Hespanha, António Manuel, “Historiografia jurídica na formação do Estado”, Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, vol. 12, n.º 21, agosto-dezembro, 2019, pp. 15-47; HESPANHA, António Manuel, “O constitucionalismo monárquico português. Breve síntese”, Historia Constitucional, n. 13 (2012) pp. 477-526; MARQUES, Mário Reis, “Elementos para a aproximação do estudo do "Usus modernus pandectarum" em Portugal”, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra (1983) pp. 3-28; Marques, Mário Reis, “O liberalismo e a codificação do direito civil em Portugal: subsídios para o estudo da implantação em Portugal do direito moderno”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, volume XXIX, Suplemento ,1987; Pereira, José Esteves, O Pensamento Político em Portugal no Século XVIII. António Ribeiro dos Santos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005; SANTOS, António Ribeiro dos, Notas ao plano do Novo Codigo de Direito Publico de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro [dos Santos] em 1789, Coimbra, na Imprensa da Universidade, 1844, pp. 60-112; Silva, Taíse Quadros da, Maquinações da Razão Discreta. Operação historiográfica e experiência do tempo na Classe de Literatura Portuguesa da Academia Real das Ciências de Lisboa (1779-1814), Tese de Doutoramento, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010.Pedro Cardim**Agradeço a Ana Cristina Nogueira da Silva a leitura de uma primeira versão deste texto. As suas críticas e sugestões em muito o beneficiaram.PortuguesaSócio efetivo: 01-04-1791Literatura PortuguesaSócio supranumerário: 19-01-1780; sócio efetivo: 01-04-1791