Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

DHB

AzeredoJosé Pinto deRio de JaneiroLisboaMédico. Sócio correspondente.

Filho do cirurgião Francisco Ferreira de Sousa e de Ângela Maria de Morais. Esteve matriculado no curso de medicina na Universidade de Edimburgo entre 1786 e 1788, tendo defendido a tese na Universidade de Leiden, a 24 de maio de 1788, registada no livro de atas do senado da universidade em 11.6.1788 (Bronnen Tot De Geschiedenis). Terá viajado de seguida para Portugal com o irmão, Francisco Pinto de Azeredo, com quem partilhou os estudos, para obter o reconhecimento da graduação.

Devido à intervenção do secretário de Estado dos Negócios do Reino, José Seabra da Silva, junto do Protomedicato (o organismo que acreditava os graus de medicina obtidos no estrangeiro), em 7 de fevereiro de 1789, o processo administrativo foi agilizado e, menos de duas semanas depois (19.2.1789), recebiam a “carta de aprovação” em medicina assinada pela rainha. Em abril, Azeredo era “despachado [por vontade própria] em físico mor p[ara] o Reino de Angola”. Algures no mesmo ano, foi admitido como membro correspondente da Academia das Ciências.

Organizada a burocracia, viaja para o Rio de Janeiro, onde exerce como médico e realiza estudos químicos sobre o ar da cidade, trabalho que apresenta na Sociedade Literária e faz publicar, em Lisboa, na edição de março de 1790, do Jornal Enciclopédico. Foi do Brasil que viajou para Angola. Em setembro desse ano, já se encontra no Hospital da Misericórdia de São Paulo da Assunção de Luanda, onde estabelece, de acordo com o contrato laboral, uma “escola de medicina”, não para formar médicos no sentido académico do termo, mas para providenciar alguma formação aos aprendizes de cirurgião (que depois podiam ser autorizados a exercer como médicos nos locais onde não houvesse diplomados). Além de um salário apelativo (600$000 réis), Azeredo nutriria a esperança de que este serviço fosse posteriormente capitalizado na sua evolução profissional.

Devido aos atrasos da coroa em autorizar o seu regresso, apesar dos graves problemas de saúde, permaneceu em Angola “6 anos e 9 meses completos”. Ao forçar a sua saída para o Brasil, a 10 de junho de 1797, foi acusado pelo governador-geral de agir como um fugitivo, recomendando que fosse punido. Em maio de 1799, já está em Lisboa a praticar medicina privada. A 15 de julho de 1801, ingressa no Hospital Militar, tudo indica sob a proteção de Luís Pinto de Sousa Coutinho, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Doente, em 1805, tentou sem sucesso regressar ao Brasil para ocupar o cargo de físico-mor das tropas do Rio de Janeiro. Morreria cinco anos depois, aos 46 anos de idade.

O caso dos Azeredos ilustra as dificuldades típicas de mobilidade social na sociedade portuguesa do final do Antigo Regime. O pai ascendeu a cirurgião-mor no 1.º Regimento de Infantaria do Rio de Janeiro, atingindo o máximo a que conseguia aspirar. Desprezada pelo meio médico, que considerava a cirurgia uma profissão mecânica, a posição permitia-lhe, contudo, expandir a sua autoridade e obter maiores benefícios económicos. Ambicionou para os filhos o patamar seguinte, o de médico, no entanto, talvez devido à duração do curso em Portugal, possivelmente o mais longo da Europa, preferiu enviá-los para o estrangeiro. Graduado num tempo que, usualmente, era tomado pelos cursos preparatórios para a Faculdade de Medicina em Coimbra, José Azeredo teve de enfrentar os constrangimentos de uma sociedade pouco recetiva à mudança. Se bem que a acreditação do curso lhe conferisse o direito de exercer sem restrições, na prática quotidiana a situação diferia significativamente: o diploma do Protomedicato era visto com estigma e, desde o século XVII, os médicos formados em Coimbra tinham prioridade no acesso aos empregos disponíveis. O facto de se distinguir por ser o primeiro médico formado no exterior a desempenhar uma função de chefia no império apenas significava que a coroa estava a ter mais dificuldades que as habituais para preencher aqueles lugares, tendo aceitado a sua proposta para o ocupar.

O confronto com a realidade ocorreu quando ingressou no Hospital Militar de Xabregas. Tomando a nomeação como uma distinção – refere na Colleção de Observaçoens Clinicas que fora escolhido pelo príncipe regente “entre tantos médicos beneméritos para cuidar da saúde da tropa” –, reagiu negativamente ao ser colocado como segundo médico, em vez de primeiro médico, posição atribuída a Bernardo José Abrantes e Castro. Desvalorizou o currículo de Castro, revelando ignorar a superioridade conferida à graduação em Coimbra.

O ambiente hostil que o recebeu, marcado por acusações de más práticas clínicas, estendeu-se para além do hospital, comprometendo as suas ambições tanto como físico-mor no hospital do Rio como do Exército, em Portugal. Quando o cargo de primeiro médico em Xabregas ficou vago, também em 1805, as autoridades preferiram atribuí-lo, ainda que interinamente, a Bernardino António Gomes, um crítico do meio médico militar, porém formado em Coimbra. Acrescia o facto de, naquele momento, o exército estar a cerrar fileiras contra as políticas intervencionistas do Estado, que visavam uniformizar a formação dos cirurgiões, eliminando a autonomia dos militares, um processo que acabaria por ser abandonado.

O que surpreende neste período, não obstante, de certa forma, esclarecer os equívocos em que Azeredo incorria sobre a essência da sociedade portuguesa, é a valorização, nas suas apresentações credenciais, da formação académica estrangeira (com professores membros da elite ilustrada escocesa) e do cargo de físico-mor em Luanda, em detrimento dos seus créditos científicos: um ensaio premiado pela Royal Medical Society of Edinburgh (1787); a dissertação de curso, na área da química e da medicina, galardoada, no ano seguinte, pela Harveian Society of Edinburgh, e elogiada e sintetizada pelo seu presidente, Andrew Duncan, na revista Medical Commentaries; e a publicação do texto “Exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro” no Jornal Enciclopédico (1790).

Poderá ter igualmente desvalorizado a sua ligação à Academia das Ciências, aspeto mencionado apenas uma vez, no manuscrito Anatomia dos ossos e vasos linfáticos do corpo humano, em 1791, e somente após referir a presidência anual da Sociedade Médica de Edimburgo, uma associação de estudantes de medicina, e a filiação nas reais academias das ciências de Londres e Edimburgo, que não foi possível confirmar.

Nas menções subsequentes, limita-se a indicar ser “Socio de várias Academias da Europa”. Embora não se tenha detetado qualquer interação com a Academia das Ciências (recorde-se que viveu em Angola entre 1790 e 1797), a sua exclusão da lista de membros em maio de 1798, com mais outros 17 sócios, enquanto se encontrava no Rio de Janeiro, não deixa de ser desafiadora do ponto de vista da compreensão, especialmente quando se observa quem são os demais “excluídos”: indivíduos com reputações científicas duvidosas; acusados de bigamia; condenados a degredo perpétuo por conspiração política; ou já falecidos. No grupo, figuram também alguns estrangeiros e vários luso-brasileiros, de formações ecléticas, sem registo de infrações conhecidas, que provavelmente não terão correspondido às expectativas intelectuais neles depositadas. Seria, talvez, o caso do irmão, Francisco de Azeredo, de quem não se conhece qualquer produção científica, porém não o dele, conforme mencionado. Possuía ainda a seu favor um conhecimento significativo sobre o império, fruto, inclusive, de algumas explorações científicas realizadas por iniciativa própria, abarcando tanto práticas curativas como condições ambientais, climáticas e sanitárias propícias às doenças, temas de interesse para a Academia das Ciências. E, igualmente relevante, um propósito reiterado de utilidade pública do seu trabalho.

Certo é que o período após a sua exclusão coincidiu com uma fase de grande produtividade, apesar de apenas ter conseguido publicar os Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola (Régia Oficina Tipográfica, 1799). Entre os trabalhos ainda por publicar e outros recentemente divulgados (Tratado Anatômico dos Ossos; Isagoge Patológica do Corpo Humano; Collecção de observaçoens clinicas), sobressaem materiais didáticos e pedagógicos, bem como investigações inovadoras baseadas em ciência experimental. Estas obras, fundamentadas na renovação do conhecimento científico da Ilustração europeia, evidenciada também na sua biblioteca pessoal, que reunia 366 títulos e mais de seiscentos volumes, conjugam a formação teórica universitária com a experiência e a observação prática, refletidas em diversos textos, alguns dos quais designa, precisamente, por “observações”. É o caso da Collecção de observações clínicas (pós-1803), o primeiro de uma série de seis volumes que José Azeredo promete ao príncipe regente, “trabalho […] todo feito a beneficio da mesma tropa”. No último, propunha-se apresentar “um regulamento médico para os hospitais militares”, uma proposta que, indo ao encontro das preocupações governamentais da época, revela, todavia, alguma ingenuidade ao pensar que conseguiria penetrar no complexo universo militar.

Num sentido mais geral, em termos de planeamento de carreira, Azeredo poderá também ter subestimado o impacto das suas críticas, mesmo que sob a forma de autoelogio ao seu exercício clínico, à medicina comummente ensinada e praticada em Portugal. Ainda que estas críticas estejam fundamentadas na consciência da transitoriedade de todo o conhecimento e no valor da interdisciplinaridade para a abordagem médica, sobretudo a química e a história natural – princípios já então aceites por muitos –, é possível que não tenha avaliado devidamente como tais posições poderiam ser percecionadas como ameaçadoras pelas estruturas estabelecidas, tanto académicas como profissionais.

Além dos prémios recebidos na Escócia, foi agraciado, em 1799, com o hábito da Ordem de Cristo e uma tença anual de 12$000 réis como reconhecimento pelos serviços prestados em Angola.

“Exame Quimico da Atmosphera do Rio de Janeiro”, Jornal Encyclopédico, 1790, Lisboa, março, pp. 259-288; Oração de Sapiência feita e recitada no dia 11 de Setembro de 1791 [Ms.], BNP: COD. 8486//1, fls. 1-7v; Anatomia dos ossos, e vasos Lymphaticos do Corpo Humano [Ms.], Lisboa no anno de 1791, BNP: COD. 8485//2; Apontamentos de Matéria e Química médicas [Ms.] [1791-1797], BNP: COD. 8484; Apontamentos de Medicina [Ms.], s.d., BNP: COD. 8485//1; Estudos anatómicos [Ms.], s.d., BNP: COD. 8486//2; Observação geral sobre as laxaçoens [Ms.], s.d., BNP: COD. 8486//4; Prolegomenos da Myologia [Ms.], s.d., BNP: COD. 8486//3; Prolegomenos sobre as glandulas [Ms.], s.d., BNP: COD. 8485//3; Tratado Anatómico Dos Ossos, Vasos Linfáticos, e Glândulas [Ms.], s.d., BPMP: COD. 1126. Júlio Costa (ed.), Lisboa, Edições Colibri, 2014; Ensaios sobre Algumas Enfermidades de Angola, Lisboa, Regia Officina Typografica, 1799; Isagoge pathologica do corpo humano dedicada a Sua Alteza Real o Principe Regente Nosso Senhor [1802], António Braz de Oliveira; Manuel Silvério Marques (eds.), Lisboa, Edições Colibri, 2014; Collecção de observaçoens clinicas [depois de 1803], Júnia Ferreira Furtado, Jean Luiz Neves Abreu, André Nogueira (eds.), Lisboa, Edições Colibri, 2020.Processo académico, AH-ACl, PT/ACL/ACL/C/001/1789/JPA; Bronnen Tot De Geschiedenis Der Leidsche Universiteit Uitgegeven Door Dr. P. C. Molhuysen. Zesde Deel. 10 Febr. 1765 – 21 Febr 1795, ´S-Gravenhage, Martinus Nijhoff, 1923, p. 126; DUNCAN, Andrew, "Account of the delivery of the Harveian Prize at Edinburgh, to Mr. Joseph Pinto Azeredo", Medical Commentaries, v. 3, 1788, pp. 396-399; ABECASIS, Isabel, “Sobre a documentação levantada no Arquivo Histórico Ultramarino, relativa a José Pinto de Azeredo”, in OLIVEIRA, António Braz de; MARQUES, Manuel Silvério (eds.), Isagoge Patológica do Corpo Humano, Lisboa, Colibri, pp. 479-482, 2014; ABREU, Jean Luiz Neves, “José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola: Saber Médico e Experiências Coloniais nas Últimas Décadas do Século XVIII”, Revista de História, São Paulo, n. 166, 2012, pp. 163-183; ABREU, Laurinda, “Formações e carreiras médicas em Portugal no tempo de José Pinto de Azeredo, 1764-1810”, História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, out.-dez. 2021, pp. 919-938; CARDOSO, Adelino, “Pinto de Azeredo: um médico livre, positivo e ecléctico”, in OLIVEIRA, António Braz de, MARQUES, Manuel Silvério (eds.), Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola, Lisboa, Colibri, 2013, pp. 267-276; COSTA, Júlio, “Um esculápio brasileiro ignorado: contributo para um itinerário biográfico de Francisco Joaquim de Azeredo (1768-1855)”, R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 179 (477), 15-44, mai./ago. 2018; MARQUES, Manuel Silvério, “Malhas que o corpo tece: excurso da medicina de José Pinto de Azeredo”, in OLIVEIRA, António Braz de, MARQUES, Manuel Silvério (eds.), Ensaio sobre algumas enfermidades de Angola, Lisboa, Colibri, 2013, pp. 213-251; MAIA, Emílio Joaquim da Silva, “Elogio histórico do dr. José Pinto de Azeredo”, Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, t. II, 1840, pp. 59-65; OLIVEIRA, António Braz de, “Do Rio a Lisboa, passando a Luanda: achegas para uma biografia de José Pinto de Azeredo”, in OLIVEIRA, António Braz de, MARQUES, Manuel Silvério (eds.), Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola, Lisboa, Colibri, 2013, pp. 153-187; PINTO, Manuel Serrano, et al., “O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro”, História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12, n. 3, 2005, pp. 617-673; SARAIVA, Maria Teresa Monteverde Plantier, “José Pinto de Azeredo na Torre do Tombo: inventário dos bens e outros documentos”, in OLIVEIRA, António Braz de, MARQUES, Manuel Silvério (eds.), Isagoge Patológica do Corpo Humano, Lisboa, Colibri, 2014, pp. 529-633.Laurinda AbreuBrasileiraSócio correspondente; omitido de Académico: 09-05-1798.Ciências