Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

DHB

SoaresJosé Pinheiro de FreitasÁguedaLisboaMédico. Sócio efetivo na classe de Ciências Naturais.

Filho de António Pinheiro e de Josefa Luísa de Jesus, naturais de Águeda, comarca de Aveiro. Matriculou-se na Universidade de Coimbra a 21.10.1788, concluindo o curso de medicina em 1797 (diploma de 31.7.1797).

A rápida ascensão profissional de José Soares evidencia algum capital social, pessoal e/ou familiar, que poderá ter facilitado a sua nomeação como médico do partido da câmara de Ílhavo, com um salário anual de 150 mil réis, pouco depois de ter concluído os seus estudos (carta patente de 27.9.1798). Esta circunstância poderá também explicar o convite do “bispo, corporações e mais nobreza” de Aveiro, para, pouco depois, se transferir para a capital da comarca, duplicando o vencimento (carta patente de 12.8.1800). Nos dois anos seguintes, viu as suas responsabilidades aumentarem com a titularidade vitalícia do posto de médico do porto de Aveiro e a nomeação, pela Junta do Protomedicato, como comissário juiz delegado de cirurgia, na mesma comarca. A sua remuneração subiu então para 480 mil réis, pagos pelo cofre do porto da cidade. A 16 de dezembro de 1804, obteve a renovação do cargo de comissário do Protomedicato por mais um triénio.

Nesse mesmo ano, a carreira de José Soares enfrentou uma primeira provação quando foi denunciado à Inquisição como maçom, por ler livros proibidos e negar a imortalidade da alma. A partir do ano seguinte, envolveu-se em várias controvérsias judiciais, primeiro com o corregedor da comarca, que acusou de perseguição, e posteriormente, com as entidades responsáveis pelo pagamento do seu vencimento, tendo obtido, em fevereiro de 1806, o privilégio de o manter anexado ao cofre da barra, prerrogativa que os seus colegas haviam perdido. Com a revogação da decisão, em outubro, regressa aos tribunais, que, em abril de 1808, mandam cobrar o salário da venda de vinho ou dos excedentes das sisas da cidade e povoações do termo. Perante a contestação dos visados, em janeiro de 1811, o tribunal restabelecia o pagamento pelo cofre da barra, mas apenas após superadas as dificuldades financeiras do porto. A reação das vilas de Sangalhos, Oliveira do Bairro, Aguada de Cima, Anadia e Avelãs de Basto, ditas povoações do termo, solicitando a suspensão da ordem régia sobre as sisas por quatro anos, evidenciava que José Soares não “satisfaz[ia] pessoalmente ao partido de que se encarregou”, argumento acolhido pelo rei em agosto de 1812.

De acordo com Rodrigues de Gusmão, José Soares encontrava-se em Lisboa desde 1809, dedicando-se à prática privada da medicina. No entanto, foi apenas após a cessação dos seus rendimentos provenientes de Aveiro que se desenrolou um novo capítulo no seu percurso profissional, que o colocaria no centro das decisões políticas no âmbito da saúde pública. Este período adquiriu contornos marcantes com a sua integração na Academia das Ciências de Lisboa, como membro correspondente (31.8.1812).

A 7 de outubro, estreava-se na instituição com a leitura da Memória sobre a preferência do leite de vaccas ao leite das cabras, leitura que se prolongou pelas quatro semanas seguintes. O texto remetia para uma reunião de médicos, ocorrida em junho, sob a égide da Misericórdia de Lisboa, para discutir a elevada mortalidade entre os recém-nascidos abandonados. As discussões sobre as experiências para substituir o leite materno pelo leite de animais tinham-se intensificado na Europa desde a segunda metade do século XVIII, inclusive em Portugal. Acompanhando as tendências internacionais, José Soares advogava a utilização do leite bovino. A solidez dos argumentos aduzidos, a urgência do assunto e as preocupações socioeconómicas da Academia explicarão o facto de esta ter publicado o texto ainda em 1812. Nesse ano, integra a Instituição Vacínica, de que foi diretor em novembro, apresentando, em dezembro, um relatório minucioso das atividades desenvolvidas sob a sua alçada. Nos finais de agosto de 1813, foi nomeado, com outros médicos da Academia, membro da Junta da Saúde Pública e, em outubro de 1815, delegado geral do físico-mor, que dirigia a fisicatura-mor a partir do Rio de Janeiro.

Entretanto, num processo singular, um médico amigo dava-lhe notoriedade, supostamente sem o seu conhecimento, fazendo publicar no jornal O Investigador Português, em novembro de 1812, um seu artigo sobre o potencial terapêutico do mercúrio. O ataque contundente do boticário António José de Sousa Pinto, ao texto e ao seu amigo, e, na perspetiva de José Soares, as limitações no acesso ao periódico motivaram-no a juntar os dois textos e um terceiro, de resposta às críticas, publicando-os na Imprensa Régia, em 1814, com o título de Memórias acerca do estado em que se acha o mercúrio nos unguentos. Em oposição ao conhecimento empírico do boticário, advoga a superioridade da formação universitária e do seu mestre, Tomé Rodrigues Sobral, diretor do Laboratório Químico da Universidade de Coimbra e sócio da Academia das Ciências.

Em dezembro desse ano de 1814, foi eleito académico livre e, em abril de 1817, sócio efetivo. Em julho, a Academia autorizava a publicação do Tratado de Polícia Médica, impresso no ano seguinte. A concessão do hábito de Cristo e a nomeação como médico honorário da Real Câmara, em abril e setembro de 1818, e, em novembro, a eleição como diretor da classe de Ciências Naturais, da Academia, coroavam o sucesso alcançado num curto período de tempo. O casamento com uma viúva abastada, em maio de 1813, e os emolumentos resultantes da fiscalização das boticas e dos exames a médicos, cirurgiões e boticários, em representação do físico-mor, ter-lhe-ão proporcionado uma confortável situação financeira.

No início da década de 1820, entrou numa nova etapa da sua vida, cujos contornos estão parcamente documentados. Começou por perder um dos seus cargos devido à extinção da Junta da Saúde Pública (1820); seguiu-se a prisão por questões “de vida e costumes” (1821) e foi obrigado a abandonar a presidência da Sociedade de Ciências Médicas apenas seis dias após a ocupar (1822). O facto de a Sociedade elaborar um plano de memórias que ignorava o seu trabalho sugere outras possíveis razões para a súbita partida, além das questões de saúde mencionadas. Preservou a função de representante do físico-mor e continuou a avaliar memórias submetidas à Academia. Em fevereiro de 1821, em conjunto com outros sócios, apresentou, às Cortes, a Instituição Vacínica pedindo o aumento do orçamento a fim de que a vacinação pudesse prosseguir.

Após o falecimento de D. João VI, foram-lhe atribuídas várias mercês, tanto financeiras como honoríficas, motivo que contribuiu para consolidar a sua reputação enquanto defensor da causa miguelista. Apesar de não ser possível avaliar esta dimensão da sua vida, verifica-se que as vicissitudes políticas que atravessou não alteraram a essência do seu pensamento sobre o papel da medicina e dos médicos na sociedade, pela primeira vez expresso na sua obra mais emblemática: o Tratado de Polícia Médica.

Influenciado pela escola cameralista austríaca e alemã, a Polícia Médica foi moldada pela monumental obra de Johann Peter Frank (1745-1821), System einer vollständigen medicinischen Polizey, provavelmente na sua tradução italiana (Sistema compiuto di polizia medica), e pela Médecine légale et Police médicale, de P. A. O. Mahon. A maior proximidade de José Soares com os escritos do médico germânico que cunhou o conceito de polícia médica, no contexto de um estado absolutista e burocrático, manifesta-se através da transcrição de capítulos inteiros ou, mais frequentemente, de extratos e resumos. Ao escrever sobre a realidade nacional, silencia o trabalho realizado pela Intendência-Geral da Polícia entre 1780 e 1805, precisamente ancorado nos mesmos pressupostos ideológicos.

A Polícia Médica, organizada numa estrutura complexa que não segue a matriz original, assume-se como um manual abrangente sobre saúde pública, englobando uma vasta gama de temas sanitários, higienistas, médicos e de aperfeiçoamento humano através de medidas condicionadoras do casamento. Visando regular o bem-estar físico, mental e social da população através do poder paternal do soberano, num estado policial, os princípios doutrinários em que assentava já se encontravam desatualizados aquando da sua publicação, ainda mais numa sociedade que se encaminhava para o liberalismo. Embora, à semelhança dos seus inspiradores, José Soares almejasse a incorporação do saber médico nas deliberações políticas, na proposta de regimento de saúde com que inicia o livro desvenda uma complexa interação da medicina, da saúde pública e da administração política. A configuração sugerida circunscreve a autoridade dos médicos, posicionando-os na categoria de “funcionários subalternos”, submetidos ao poder administrativo do Estado e das autoridades locais. A ideia de que os médicos deveriam manter-se afastados dos centros de decisão política – uma característica do século XIX português – não sofreu mudanças substanciais nos últimos textos que escreveu, depois de um interregno de mais de uma década: a Memória sobre a utilidade e nobreza da medicina, que leu na Academia a 1 de dezembro de 1829, e, particularmente, na Memória das qualidades e deveres do médico, cuja apresentação esteve prevista para dezembro de 1830, mas que já não concretizou por se encontrar doente. Subentendendo-se algum ressentimento decorrente das suas próprias vivências, Freitas Soares recomenda aos médicos que observem as leis do país, escolhendo sempre a justiça, a ética e a razão, ainda que acarretando significativos riscos pessoais e familiares.

Na sua essência, estas duas últimas memórias constituem um texto único, configurando-se como uma espécie de testamento político, que fornece orientações morais e éticas aos médicos. Aspira, também, a influenciar a reforma do ensino condenando a manutenção de barreiras à plena integração da cirurgia na formação médica e o facto de não serem dadas condições salariais e laborais aos médicos novos para desenvolverem os seus conhecimentos em contexto hospitalar. Neste sentido, apesar de reconhecer a relevância das recém-estabelecidas escolas cirúrgico-médicas, percebe-as como simples locais de formação de cirurgiões destinados a servir em regiões carecentes de médicos ou na marinha e no exército, incapazes, portanto, de ombrear com o ensino universitário, vinculado à filosofia, à moral e a outras áreas do conhecimento; continuando uma luta que a Universidade de Coimbra travava há 300 anos, censurava ainda a acreditação de graus de medicina obtidos em três ou quatro anos em universidades estrangeiras.

É no ancestral reconhecimento da nobreza da medicina que sustenta a elevação do estatuto dos médicos, agraciados por reis e príncipes. Entre as numerosas honras e mercês que expõe na memória de 1829, inclui a de fidalgo cavaleiro e uma comenda honorária da Ordem de Cristo que ele próprio recebera de D. Miguel I, normalizando-as no contexto de uma prática habitual de “remuneração de serviços”. Antes disso, fora nomeado cavaleiro da ordem de Cristo (6.7.1818); médico honorário da real câmara (30.9.1818) e seu médico efetivo com o ordenado de 100$000 réis (5.05.1826). A 19 de junho de 1828, ter-lhe-ão sido concedidas as honras (mas não o cargo) de físico-mor, seguidas, em setembro, da nomeação como censor no Tribunal do Desembargo do Paço.

Memoria sobre a preferencia do leite de vaccas ao leite de cabras para o sustento das crianças, principalmente nas grandes casas dos expostos […], Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1812; “Conta dada na congregação dos membros da Instituição Vaccnica […] em 15 de Dezembro de 1812”, Collecção de Opúsculos sobre a vacina [...], I e II, Lisboa, Na Typografia da Academia, 1812, pp. 77-96; Memorias acerca do estado, em que se acha o mercurio nos unguentos e outras preparações mercuriais […], Lisboa, Na Impressão Regia, 1814; Tratádo acerca de differentes materias, que dizem respeito a hum Projecto de Regimento de Policia Médico-Judiciario para o interior do Reino de Portugal, [s.l., 18--], BACL, Série Azul, ms. 1762; Tratado de Policia Médica […], Lisboa, Typografia da Academia Real das Sciencias, 1818; “Memoria na qual se trata da utilidade, nobreza da medicina e consideração dos médicos, Historia e memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, v. 11, pt. 1, Lisboa, Na Typografia da Mesma Academia, pp. 1-44; “Memoria acerca das qualidades e deveres do medico”, Historia e memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, v. 11, pt. 1, Lisboa, Na Typografia da Mesma Academia, pp. 191-252.Processo académico, AHA-ACL, PT/ACL/ACL/C/001/1812-08-31/JPFS; ANTT, Chancelaria de D. Maria I, liv. 58, fls. 3v-4; liv. 64, fls. 26v-27v; liv. 66, fls. 171-171v; liv. 73, fl. 334; liv. 74, fls. 5-5v; ANTT, Chancelaria de D. João VI, liv. 12, fls. 174v-175; ANTT, Feitos Findos, Juízo da Chancelaria, Letra J, mç. 158, n.º 122; Letra M, mç. 323, n.º 39; ANTT, Feitos Findos, Processos-Crime, Letra M, mç. 71, n.º 79, cx. 157; ANTT, Feitos Findos, Juízo da India e Mina, Justificações Ultramarinas, Terras Diversas, mç. 5, n.º 7; ANTT, Mesa da Consciência e Ordens, Chancelaria da Ordem de Cristo, Chancelaria D. João VI, liv. 2, fls. 264 e 264v; ANTT, Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, 2.ª inc., Mç. 26, n.º 88, cx. 87; ANTT, Registo Geral de Mercê, D. João VI, liv. 22, fl. 52; ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 17193; Abreu, Laurinda, Pina Manique: um reformador no Portugal das Luzes, Lisboa, Gradiva, 2013; Abreu, Laurinda, “Portuguese Experiences of Artificial Infant Feeding in the Late Eighteenth Century”, Food & History, 14:1, 2016, pp. 55-79; Câmara, Benedita Cardoso, Do agrarismo ao liberalismo: Francisco Soares Franco: um pensamento crítico, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica; Gusmão, Francisco Antonio Rodrigues de, Memórias biográphicas dos medicos e cirurgiões portuguezes que, no presente século, se teem feito conhecidos por seus escriptos, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858; Soares, Kevin Carreira, “A alimentação dos expostos através da memória sobre a preferência do leite de vaccas (1812), de José Pinheiro de Freitas Soares (1769-1831)”, in Soares, Carmen; Ribeiro, Cilene da Silva Gomes (coords.), Mesas luso-brasileiras: Alimentação, saúde & cultura, v. 1, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018, pp. 145-162; Subtil, José, “Um caso de ‘estado’ nas vésperas do regime liberal: Portugal, Século XVIII”, in Moita, Luís; Freire, Lucas G. e Subtil, José (eds.), Do Império ao Estado. Morfologias do sistema internacional, Lisboa, OBSERVARE-UAL, 2013, pp. 103-107; Silva, António Delgado da, Supplemento a collecção de legislação portugueza […] anno de 1791 a 1820, Lisboa, Typ. de Luiz Correa da Cunha, 1847, pp. 629-632.Laurinda AbreuPortuguesaSócio efetivo: 08.04.1817.Ciências NaturaisSócio correspondente: 31.8.1812; sócio livre: 01-12-1814; sócio efetivo: 08-04-1817.