Filho do cirurgião Francisco Correia Picanço, natural de Azeitão (Portugal) e residente no Recife, e de Joana do Rosário. Aclamado como precursor do ensino médico no Brasil, Correia Picanço segue uma trajetória socioprofissional mais relevante do que a descrita pelos estudos encomiásticos iniciados ainda no século XIX. Poderá, inclusive, representar um dos exemplos marcantes de fulgurante mobilidade social em Portugal no fim do Antigo Regime, cunhada no âmbito das reformas pombalinas. Revela também como, numa espécie de jogo de espelhos invertido, soube capitalizar o peso simbólico e real de uma das instituições mais influentes na configuração da sociedade portuguesa durante vários séculos, a Universidade de Coimbra.
Correia Picanço obteve a carta de cirurgia (um ofício mecânico) a 26 de março de 1765. Diferentemente do seu pai, que adquirira a mesma certificação em 30 de setembro de 1743, após formação no Hospital de Todos os Santos (1728-1730), não existem registos de que tenha frequentado o principal hospital português, nem ele próprio afirmou tal associação. As informações que fornece acerca da recolha de ossos num cemitério de Lisboa, durante os seus estudos, com o propósito de montar um esqueleto, sugerem que, à semelhança da maioria dos cirurgiões, terá feito a sua aprendizagem num contexto informal, que poderá ter começado na casa paterna.
Os anos subsequentes encontram-se envoltos em mistério, que suscitou interpretações fantasiosas. Entre elas, uma suposta graduação em saúde pública (officier de santé), em Paris, apadrinhada pelos cirurgiões Sauveur-François Morand e Raphaël Bienvenu Sabatier, e também o casamento com uma filha deste último. Manuel de Sá Mattos, seu coetâneo, comenta na
A reforma da Universidade de Coimbra marcaria um ponto de viragem decisivo na sua vida. Seis meses após o matrimónio, a 3 de outubro de 1772, o marquês de Pombal nomeava-o “demonstrador” da recém-criada cadeira de Anatomia, Operações Cirúrgicas e Arte Obstétrica, ministrada na faculdade de medicina pelo médico italiano Luís Cichi. De acordo com os novos estatutos, competia aos demonstradores, “subalternos” dos lentes e dos seus substitutos, assistir “nas lições práticas naquillo que elles ordenassem”. Em casos excecionais, poderiam ocupar, temporariamente, as funções dos substitutos.
Foi isso que aconteceu perante o mau desempenho de Cichi, que conduziria à sua suspensão em 1776 e à subsequente demissão em 1778. Correia Picanço tornou-se substituto temporário e, em 18 de janeiro de 1779, substituto efetivo. Em fevereiro, era provido na cadeira com o grau de doutor, beneficiando da prerrogativa que Pombal havia atribuído aos professores por ele escolhidos (não era o seu caso), libertando-os de cursar o 6.º ano de medicina e de aprovação nos respetivos exames – Actos Grandes –, exigido aos que pretendiam seguir a carreira universitária. Na Memoria historica e commemorativa da Faculdade de medicina, Bernardo Mirabeau recordava que a lei não permitia aos demonstradores ascender “d’aquelles logares para as cadeiras da Faculdade”, mas que Correia Picanço (e o seu sucessor) conseguira com os seus méritos o que a lei recusava. Contrariando as normas do direito positivo, um mecânico tornava-se professor enquanto a universidade persistia na desvalorização dos graus de medicina obtidos no estrangeiro, como experienciou José Pinto de Azeredo, diplomado pela Universidade de Leiden em 1788.
É o próprio que reconhece as suas limitações teóricas na carta de agradecimento, em 21.8.1780, a um dirigente não identificado da recém-criada Academia das Ciências que o tinha feito ingressar na instituição (19.1.1780) depois de, em Coimbra, ter assistido às suas “dissencções anatómicas” e preleções. Escolhido dentre colegas mais qualificados, admite que a sua única vantagem era um intenso desejo de aprender. Jurou cumprir “as obrigações de zelozo e verdadeiro socio”, esforçando-se por ser digno do privilégio recebido, mas não há provas de que o seu saber tenha sido posto ao serviço da Academia nem que com ela voltasse a interagir. As suas estratégias de vida seguiriam outros rumos.
Em 1789, alegava a sua valiosa contribuição “na criação e estabelecimento da cadeira de anatomia de que foi lente na Universidade de Coimbra e que regeu por 18 anos” para solicitar à rainha um hábito de Cristo. Com o hábito (17.11.1789), vinha uma pensão de 60$000 réis e o direito de transferir 48$000 réis para a sua filha, Isabel Felisberta. A 28 de junho de 1790, requeria a jubilação. Correia Picanço retirava-se do ensino, deixando os dois filhos mais velhos a cursar medicina. O mais novo, António, nascido em Coimbra (como a irmã), concluiria o curso de Direito em 1798, sendo agraciado com o hábito da Ordem de Cristo em 1802, atingindo em Portugal, a posição de maior prestígio, como desembargador da Relação e Casa do Porto, com exercício na Casa da Suplicação, e auditor geral da Marinha.
Com o estatuto de professor universitário, regressou a Lisboa e aproximou-se da Casa Real, que o nomeou seu cirurgião menos de um mês após a jubilação (20.7.1790). O convívio com a família real e a intimidade com os seus corpos, elementos recorrentes na justificação discursiva das mercês solicitadas – acompanhamento das enfermidades da rainha; assistência aos partos das princesas e vacinação dos seus filhos (ainda que omitindo a participação na junta que confirmou o “impedimento” de D. Maria I (10.2.1792)) –, fortaleceu a sua legitimação profissional e conduziu-o às posições mais elevadas da hierarquia médica.
Começou por se libertar da habilitação para obtenção do hábito da Ordem de Cristo (4.3.1791). A 10 de janeiro de 1792, alcançava o estatuto de cavaleiro fidalgo, estatuto que estenderia aos dois filhos mais velhos, ainda estudantes, a 22 de maio. Em julho era nomeado cirurgião da Real Câmara (engano do escrivão regista-o como médico), chegando a seu primeiro cirurgião em novembro de 1795. Num trajeto marcado por contínuos acréscimos patrimoniais, nesse verão, recebera da coroa o ofício de tabelião e escrivão da ouvidoria do cível da Bahia e o direito de nomear serventuário.
Em novembro de 1798, juntamente com o médico Francisco Tavares e o físico-mor do Exército, Correia Picanço foi escolhido para liderar o Protomedicato, entidade criada em 1782, para combater os graves danos causados por indivíduos não qualificados que atuavam no campo da saúde. A 6 de maio de 1799, foi investido como cirurgião-mor do reino, enquanto Francisco Tavares ascendia a físico-mor, cargos vagos “ha muitos annos”. Ambos tinham iniciado as carreiras como demonstradores em Coimbra, embora o último fosse aí diplomado. Atuando de forma coordenada a partir do Protomedicato, elevado à condição de Tribunal Régio no mesmo ano de 1799, empenharam-se em diminuir a influência da Faculdade de Medicina e em estabelecer em Lisboa o centro do poder médico, fixado em Coimbra pelos Estatutos de 1772. A queixa da universidade, de que o Protomedicato a deixara “com uns estatutos inúteis, no que concerne a essa protecção do exercício da medicina”, adquire particular acuidade durante este período.
Desde 1805, figura como conselheiro do príncipe regente e, sem surpresas, acompanha-o na viagem para o Brasil em 1807. Na Bahia, onde a comitiva real aporta, ao título de cirurgião-mor do reino, o príncipe acrescenta, a 27 de janeiro de 1808, “e dos Estados e dos Domínios Ultramarinos”, reforçando o seu poder pessoal (bem como o do físico-mor) e tornando inevitável a extinção do Protomedicato (7.1.1809). A nova situação, explicava numa carta de 10 de março dirigida à mulher que permanecera em Lisboa, proporcionar-lhes-ia um bom conforto financeiro.
Durante a sua permanência na Bahia, por diploma de 18 de fevereiro de 1808, obteve autorização para fundar uma Escola de Cirurgia no Hospital Real, institucionalizando assim o ensino da cirurgia, área em que se distinguiam os cirurgiões-mores militares. A 2 de abril, a experiência foi replicada no Hospital Militar do Rio de Janeiro, talvez a pedido do cirurgião-mor do exército, Fr. Custódio de Campos Oliveira. O protagonismo adquirido por esta escola, fora da alçada de Correia Picanço e, sobretudo, após as reformas iniciadas em 1812, às quais se terá oposto por afrontar a sua autoridade, sugere que a sua carreira no Brasil pode não ter sido tão extraordinária quanto fora no reino, apesar do reconhecimento obtido, incluindo o título de comendador honorário da nova Ordem da Torre e Espada, em 21.12.1808 e de barão de Goiana, talvez em 20.3.1820.
Não se lhe conhece produção científica própria. A universidade solicitou-lhe a elaboração de um compêndio de Anatomia (1786) e ele terá anunciado a conclusão de um tratado de Osteologia (22.12.1789), mas não há rasto da sua existência. O livro que fez publicar no Rio de Janeiro, em 1812,
Ao contrário de Vicq d’Azyr, que creditou o autor original e acrescentou uma introdução minuciosa sobre França, Correia Picanço apropriou-se do texto, fazendo-lhe três breves inclusões: a nota sobre a recolha de ossos enquanto estudava em Lisboa, dois episódios observados durante a lecionação em Coimbra e um excerto do testamento de Inácio Tamagnini sobre a inumação do seu cadáver. Silenciava, contudo, a participação deste nos projetos da Intendência-Geral da Polícia para construir cemitérios fora dos núcleos urbanos, desde a década de 1790. Vicq d’Azyr, mencionado numa passagem que o próprio atribuíra a Cícero, não é reconhecido como o autor da bibliografia e da citação de um diploma do arcebispo de Toulouse que Picanço junta ao texto de Piattoli. A ocultação do seu nome sob as iniciais J. C. P., sem referência a cargos ou afiliações científicas, indica possíveis constrangimentos em assumir plenamente a responsabilidade pela obra.