Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

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NevesJosé Acúrsio dasCavaleiros de Baixo (Fajão)SarzedoMagistrado e economista político, deputado e secretário da Real Junta do Comércio e diretor da Real Fábrica das Sedas. Sócio substituto de efetivo na classe de Literatura Portuguesa.A2-Ass-Acursio-das-Neves.png

Natural de freguesia que hoje pertence ao concelho de Pampilhosa da Serra, filho de António das Neves e de Josefa da Conceição, José Acúrsio concluiu a sua formatura em Leis na Universidade de Coimbra em 1787. Ingressou na carreira da magistratura exercendo os cargos de juiz de fora e de corregedor em Angra, na Ilha Terceira, entre os anos de 1795 e 1802. Aí escreveu o seu primeiro texto de economia política, dedicado à defesa da liberdade de comércio dos cereais nas ilhas dos Açores e entre as ilhas e o continente, no qual são patentes as influências da leitura da obra de Adam Smith.

Permaneceu nos Açores durante mais 5 anos até regressar ao continente em outubro de 1807, nas vésperas de acontecimentos decisivos para o país e também para ele próprio. A destruição material e o desgaste moral provocados pelas invasões francesas acicataram o espírito nacionalista e a escrita inflamada do autor de diversos panfletos antifranceses e de uma História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino, na qual transparece uma identificação do invasor com o espírito da Revolução Francesa e do novo ideário político (o constitucionalismo liberal) que ela representava e que Acúrsio das Neves repudiava. Esse foi o mais constante elemento e a mais persistente tónica do seu pensamento político, contrastando com a adesão ao ideário liberal em matérias económicas.

O prestígio patriótico e a visibilidade pública que então alcançou, por certo associados à simpatia que por ele nutria o influente D. Rodrigo de Sousa Coutinho, justificaram a sua nomeação como deputado e secretário da Real Junta do Comércio em junho de 1810, cargo este que acumulava com o de diretor da Real Fábrica das Sedas. Nesse mesmo ano, a 27 de outubro de 1810, foi eleito sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa.

O papel que desempenhou na Junta do Comércio foi decisivo para dotar esta instituição de capacidade de avaliação criteriosa e fundamentada de petições e propostas com vista à atribuição de mercês e autorizações de instalação e desenvolvimento de atividades e iniciativas económicas, em especial no setor industrial, que permitissem a recuperação do tecido económico português. E foi também essa experiência de contacto próximo com a realidade económica que esteve na origem das reflexões que publicou nos dois volumes de Variedades sobre Objetos Relativos às Artes, Comércio e Manufacturas, Consideradas Segundo os Princípios da Economia Política (1814-1817) (Obras Completas, vol. 3).

Esta obra constitui referência essencial para se compreender a penetração e apropriação do discurso da economia política de Adam Smith, Jean-Baptiste Say e da escola clássica inglesa em Portugal. A sua preocupação pragmática fundamental foi a de encontrar as soluções mais adequadas ao desenvolvimento económico do país, cuja execução pressupunha conhecimentos estabilizados da ciência que poderia auxiliar o legislador a chegar a bom porto, ou seja, a economia política. Três anos mais tarde, no rescaldo da revolução liberal de 1820, publicou a Memória sobre os Meios de Melhorar a Indústria Portuguesa (1820, Obras Completas, vol. 4), que constitui o primeiro, e certamente também o último, gesto público de aceitação do regime político regenerador por parte de Acúrsio das Neves. Nesse texto, preconiza um modelo de desenvolvimento dos diversos setores de atividade em que a indústria adquire papel central e funciona como motor do conjunto da economia. A sua visão industrialista contrastava com a visão prevalecente entre os principais autores que então escreveram acerca da regeneração económica do reino sobre o papel determinante da agricultura, nomeadamente os colaboradores nas Memórias Económicas da Academia. Mas uma das principais novidades introduzidas por esta Memória consiste na afirmação da convicção de que a modernização económica exigia um conjunto imprescindível de reformas institucionais: para além do ensino da economia política destinado a responsáveis da administração e do governo, destaca a educação de camadas jovens da população, a defesa e garantia do direito de propriedade e a estabilidade do sistema de finanças públicas.

No início de 1821 foi lançado o processo de saneamento que levaria à sua demissão da direção da Junta de Comércio, processo esse em que foram decisivas as denúncias e acusações daqueles que, em 1810, Acúrsio das Neves havia acusado de simpatias e colaboração com o invasor francês e que esperaram o melhor momento para desencadear a sua vingança pessoal e política. A partir de então, os escritos de Acúrsio das Neves são movidos pela acrimónia que votou aos paladinos do pensamento político constitucional de feição liberal e de aclamação do campo político contrarrevolucionário representado por D. Carlota Joaquina e D. Miguel, de quem foi fiel seguidor. O ressentimento político antiliberal agravou-se a partir de 1826, com a outorga da Carta Constitucional e, apesar de serenado com o triunfo miguelista em 1828, voltaria a causar o seu desterro e afastamento da vida pública no período que antecede as vitórias liberais de 1833 e 1834.

A agitação e a intensidade da sua carreira permitem compreender que o estatuto de membro correspondente da Academia – confirmado com a eleição como sócio livre em 1 de junho de 1826 e como substituto de efetivo em 3 agosto de 1826 – não fosse cumprido com o preceito de publicação nos prelos da Academia dos seus ensaios económicos e políticos. Porém, o processo individual que se conserva no Arquivo Histórico da Academia dá conta de uma atividade regular na elaboração de pareceres sobre a qualidade de textos ou obras submetidas a publicação pela Academia, revelando Acúrsio das Neves enorme rigor e isenção nas detalhadas apreciações críticas e recomendações de revisão que apresenta. As leituras críticas que produziu sobre textos de Francisco Xavier do Rego Aranha (epítome de História de Espanha), José Pereira de Carvalho (métodos de aperfeiçoamento da criação de ovelhas), Adrian Balbi (variedades politico-estatísticas), Joaquim Pedro Cardoso Casado Giraldes (geografia histórica), António Joaquim Gouveia Pinto (direitos estabelecidos pela legislação antiga e moderna), ou Visconde Santarém (pesquisas nas bibliotecas e arquivos de Paris sobre temas de direito público, externo e diplomático), demonstram a variedade de temas do seu interesse e, acima de tudo, o escrupuloso cumprimento do exercício académico de revisão do trabalho dos pares. O zelo que dedicou a estas notas críticas (quase todas com uma extensão média de 6 páginas), sobretudo entre os anos de 1826 e 1832, não tem sido destacado pelos biógrafos de Acúrsio das Neves e merece, certamente, cuidadoso e aprofundado escrutínio.

Este invulgar empenho na avaliação académica terá sido, porventura, o motivo que justificou a sua eleição como secretário da Academia em 27 de novembro de 1827, numa altura em que o seu fervor miguelista conhecia uma fase de pousio. Todavia, conhecendo-se antigos ressentimentos, não causou surpresa a manifestação de indisponibilidade para exercer tal cargo.

O facto de não ter exercido cargos académicos nem ter colaborado como autor de comunicações apresentadas e publicadas pela Academia, não significa que não fizesse pleno sentido que a sua enorme curiosidade intelectual encontrasse na Academia plataforma adequada para a respetiva divulgação. Exemplo dessa potencial convergência de interesses pessoais e institucionais é dado pelo livro que publicou nos prelos da Impressão Régia em 1826, e depois editado nas suas Obras Completas (vol. 5), com o título de Entretenimentos Cosmológicos, Geográficos e Históricos, uma obra bem reveladora da mundividência científica que cultivava, preferindo reencontrar-se com a beleza do cosmos e do mundo físico, para não ter de sofrer com o desconcerto do mundo político e moral. É deveras surpreendente o modo como expõe (apoiado em leituras clássicas de autores antigos, mas também em notícias úteis de obras de geografia física, astronomia e história natural dos séculos XVII e XVIII) os seus conhecimentos relativos a estrelas, planetas e cometas, sobre a esfera terrestre e seus movimentos, sobre latitudes e longitudes, o sistema solar, vulcões, terramotos, meteoritos e outros diversos fenómenos e objetos interessantes nos subdomínios da Cosmografia. Acúrsio das Neves sempre dissera que o século das luzes tinha tanto de abominável nos maus-tratos dados à política e à religião, como tinha de admirável nos avanços do conhecimento do mundo físico e natural. Foi essa paixão pela ciência que deixou assinalada neste singular livro de entretenimento científico.

Almodovar, António e Castro, Armando (introd.), Obras Completas de José Acúrsio das Neves, 6 vols, Porto, Edições Afrontamento, 1984-1987.Processo Académico, AH-ACL,PT/ACL/ACL/C/001/1810-10-27; Almodovar, António, A Institucionalização da Economia Política Clássica em Portugal, Porto, Edições Afrontamento, 1995; Custódio, Jorge, “Considerações sobre Acúrsio das Neves, os melhoramentos económicos e a industrialização portuguesa”, in José Acúrsio das Neves, Memória sobre os Meios de Melhorar a Indústria Portuguesa, Considerada nos seus Diferentes Meios, Lisboa, Querco, 1983, 5-72; Loureiro, Fernando Pinto, Vida e Ideias Económicas de José Acúrsio das Neves, Primeiro Grande Defensor da Indústria Moderna em Portugal (1766-1834), Lisboa, Instituto Nacional de Estatística, 1957 (Separata da Revista do Centro de Estudos Económicos, n.ºs 16 e 17).José Luís CardosoPortuguesaSócio substituto de efetivo: 3.8.1826.Literatura PortuguesaSócio correspondente: 27.10.1810; sócio livre: 1.6.1826; sócio substituto de efetivo: 3.8.1826.