Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

DHB

FrancoFrancisco de MeloParacatu (Minas Gerais), BrasilIlha dos Porcos (Rio de Janeiro), BrasilMédico. Sócio substituto de efetivo.A2.Ass-Francisco-Melo-Franco.png

Filho de um comerciante abastado de Paracatu, João de Melo Franco, natural de Portugal, e de Ana de Oliveira Caldeira, natural do Brasil. Matriculou-se na Universidade de Coimbra em 1776, concluindo o curso dez anos depois, em 1786. O registo de matrículas evidencia um percurso irregular, marcado pelo processo inquisitorial em que se viu envolvido nos finais de 1779. Em 26.8.1781, integrou a lista dos estudantes que figuraram num auto de fé, sendo acusado de “herege, naturalista, dogmático” e de negar o matrimónio. Foi condenado à prisão, alcançando o perdão régio ao fim de um ano e autorização para reinscrição no curso. O arrolamento dos bens realizado pela Inquisição a 17.11.1779 manifesta uma existência modesta e avultadas dívidas, a rondar os 100$000 réis, dos quais 28 ou 29$000 ao livreiro João Pedro Alho. Ao conterrâneo António de Morais Silva, recém-licenciado em direito, que lhe oferecera os seus livros, atribuiu a posse de “hum volume de Montesquieu e um Tratado dos Delitos ”, (presumivelmente, Dei delitti e delle pene, de Cesare Beccaria), encontrados pelos inquisidores no armário da cozinha.

Após completar os seus estudos, já casado (12.7.1782) e com filhos, tentou, sem sucesso, ingressar na carreira académica. Mudou-se para Lisboa, onde iniciou a prática privada de medicina. Em fevereiro de 1791, foi nomeado médico do Hospital de São José, embora não haja provas de que tenha exercido a função. Circunstâncias fortuitas (na sequência do falecimento da esposa (28.12.1791) e da contratação de uma ama que servia a nobreza da corte) poderão ter contribuído para a sua aproximação às elites da capital, que cada vez mais solicitariam os seus serviços médicos.

Em fevereiro de 1792, Francisco Franco fez parte, juntamente com outros dezasseis médicos, da junta que “declarou o impedimento de D. Maria I”. Em 27.12.1799, foi nomeado deputado extraordinário do Protomedicato e, em 1813, membro da Junta da Saúde, convite que terá declinado, porém a recusa não terá sido aceite. Com muitas hesitações, acabou por acolher a nomeação feita pelo conde da Barca, ministro e secretário de estado dos Negócios do Reino, com quem teria alguma proximidade, para acompanhar a princesa Leopoldina na viagem de Itália para o Brasil, partindo com a família em 6 de julho de 1817. Uma decisão que rapidamente lamentaria, diante das múltiplas adversidades com que se defrontou no Rio de Janeiro, agravadas pela morte do dito ministro, que o deixam exposto às intrigas da corte. Um cenário que lhe não era desconhecido, mas que nesse ano de 1817 o associava perigosamente aos conflitos políticos ocorridos em Pernambuco e em Lisboa, e que terão culminado na sua “incompatibilidade” com o rei D. João VI e no seu afastamento dos círculos do poder.

A sua vida encontra-se envolta numa aura de mistério que desafia qualquer tentativa de confirmação tangível. Os documentos sugerem, contudo, que a reputação de libertinagem e clandestinidade resulta mais de uma construção histórica do que de uma descrição exata da realidade. É o que acontece, por exemplo, em relação a várias obras anónimas, surgidas entre 1785 e 1794, supostamente da sua autoria. Estas obras, de caráter satírico e subversivo, questionavam o ensino universitário, a autoridade da Igreja, o fanatismo e os valores sociais tradicionais, em nome do saber científico, do primado da razão, da liberdade e dos direitos naturais, princípios do pensamento iluminista que desafiavam os poderes instituídos. Dentre todas, destacam-se O Reino da Estupidez (1785), O Filósofo Solitário (1786) e Medicina Teológica (1794). Nos dois primeiros casos, é discutível, em função das suas novas circunstâncias pessoais e familiares, que arriscasse o regresso à prisão. Neste último, como notado por Augusto da Silva Carvalho em 1941, não há razões objetivas para considerar que a investigação da Intendência-Geral da Polícia errara ao prender, em 22 de dezembro de 1794, o veneziano Caetano Alberto Dragazzi como putativo responsável pela Medicina Teológica, nem tampouco duvidar da sua viúva, que, em setembro de 1821, conseguiu que as Cortes ordenassem a devolução do remanescente dos 2000 exemplares apreendidos pelo Desembargo do Paço, desde que provasse a sua propriedade. Há ainda outra razão de natureza diferente, relacionada com a estruturação do pensamento neste livro, bastante distinta da que se colhe nas obras cuja autoria está identificada - Tratado da educação física dos meninos (1790), Elementos de higiene (1814) e Ensaio sobre as febres (1829) – todas impressas sob a chancela da Academia das Ciências, sendo esta já postumamente.

Se a sua prática médica lhe proporcionava um progressivo desafogo financeiro, o crédito intelectual foi sedimentado com a sua ligação à Academia das Ciências, onde se tornou académico correspondente, da classe de Ciências Naturais, em 26.9.1787. Em 30 de janeiro de 1809, foi eleito académico livre e, em 23.11.1812, académico substituto de efetivo. A 4 de dezembro de 1815, foi eleito vice-secretário da Academia, cargo que ocupou até junho do ano seguinte, quando é referenciado como “sócio livre em viagem” e, entre 1818 e 1820, como “sócio livre no Rio de Janeiro”. Nesta condição terá feito parte, a 6 de fevereiro de 1818, do corpo de sócios que representou a Academia na aclamação de D. João VI.

Como membro da Academia das Ciências, fez parte do grupo de médicos que, em abril de 1811, foi encarregado de debelar a epidemia de febre tifoide que assolava Lisboa e, no ano seguinte, da Instituição Vacínica, de que foi diretor, conforme a rotatividade imposta pelo seu regulamento. Nesta posição, foi o autor de uma das suas Contas das observações vaccnicas na instituição em Outubro e da Breve instrucção do que ha mais essencial a respeito da vacina.

No ano em que ascendeu a vice-secretário da Academia das Ciências (1815), Francisco Franco organiza os seus livros e redige (aparenta tratar-se da sua grafia) o Catálogo dos livros do ilustre doutor Francisco de Mello Franco. O acervo inventariado revela uma importante biblioteca (pouquíssimos livros foram incorporados posteriormente), composta por quase 700 títulos (ultrapassando o dobro de volumes), mais de 400 sobre medicina, quase todos estrangeiros, a maioria publicada após 1780. O valor de 1.200$000 pelo qual foi vendida à Biblioteca Imperial e Pública em 1824 atesta a sua relevância.

Da assimilação das ideias de outros autores, faz menção, todavia, exceto no último livro, de um modo genérico, sem preocupações formais, como é o caso das de William Buchan (Domestic Medicine, 1769) e Filippo Baldini (Metodo di allattare a mano i bambini, 1784), autores seguidos com grande proximidade ao longo do Tratado da Educação Física dos Meninos (na sua biblioteca constam as edições inglesa e francesa de 1772 e 1781 do primeiro livro e a tradução francesa do segundo, de 1786). Por regra, tende a valorizar o seu trabalho aludindo à escassez da produção nacional, raramente referindo os seus colegas e os estudos que tinham em curso, por exemplo, neste caso, para reduzir a mortalidade infantil no Hospital dos Expostos, ou desconsiderando as traduções que estavam a ser publicadas nos múltiplos campos da saúde pública, quer pela Academia das Ciências, quer pela Casa Literária do Arco do Cego.

É com base nos conhecimentos mais recentes sobre a doença e o corpo humano e as relações do homem com o mundo que o rodeia que, nos Elementos de Higiene, se propõe substituir o Tratado da Conservação da Saúde dos Povos (1756), de Ribeiro Sanches. Afirmando a inexistência, subentende-se que em termos internacionais, de “hum corpo de doutrina regular” sobre “medicina curatoria” que os gregos designavam de higiene, omite que o seu texto está fortemente ancorado nos dois volumes dos Éléments d’hygiène, publicados em 1797 por Étienne Tourtelle (possui a edição de 1802 e os dois outros livros do mesmo autor), não apenas em termos de conteúdos, resumido e desprovido de boa parte da erudição que caracteriza o original, mas também em termos de estrutura narrativa, títulos e subtítulos (iguais ou muito semelhantes, por vezes apenas alterando a ordem das palavras). Com frequência, recorre à tradução de parágrafos inteiros sem qualquer menção a Tourtelle, que se encontra acantonado em duas citações marginais. Como Ricardo Freitas assinalou, foi a partir desta obra que Francisco Franco construiu o discurso que, como substituto do secretário, seu colega e amigo pessoal, José Bonifácio de Andrada e Silva, apresentou à Academia das Ciências na sessão de 24 de junho de 1816.

Se no Tratado da Educação Física dos Meninos o apelo à inoculação das crianças, baseando-se na experiência com os seus filhos, é inovador no contexto nacional e antecipa o programa de inoculação implementado pelo governo na década seguinte, os exemplos relativos a Portugal introduzidos nos Elementos de Higiene, como o papel da Academia no estímulo ao cultivo da batata, ou as considerações sobre a Instituição Vacínica, não permitem concluir que se trata de uma obra original. Salienta-se, no entanto, o facto de, usufruindo do ambiente propício da Academia quanto às temáticas relacionadas com a saúde pública, o livro ter conhecido três edições (1814, 1819 e 1823, esta solicitada em 1821), sob a justificação de incorporar correções e acrescentos, os quais não se evidenciam, à exceção de pequenos acertos linguísticos.

Abordagem distinta é adotada no Ensaio sobre as Febres, onde, juntamente com “apontamentos, notas e reflexões” feitos em Portugal para a sua prática clínica e observações sobre febres, topografia e clima do Rio de Janeiro, estabelece diálogo com outros autores, citando-os profusamente. Com este trabalho, intentaria ascender ao universo intelectual que procurava modernizar o Rio de Janeiro, num contexto de valorização do pensamento médico, contrapondo-o ao empirismo e ao charlatanismo. Segundo alguns autores, o livro teria servido de referência para o estudo das febres no Rio de Janeiro por mais de cinquenta anos. A novidade do assunto, além da descrição dos casos clínicos, fora, precisamente, o argumento apresentado por José Pinheiro de Freitas Soares para apoiar a publicação da obra (submetida pelo autor à Academia em 1821), desde que mantivesse o título de “Ensaio”, quando a avaliou em 1824.

Ao longo da sua vida, Francisco Franco recebeu algumas mercês e distinções em reconhecimento dos seus serviços: médico honorário da Câmara Real, a 9.6.1793 (sem rendimentos associados para além das honras e privilégios inerentes ao título); cavaleiro fidalgo em 3.8.1796 (com 750 réis mensais e um alqueire de cevada diário). Terá sido agraciado com o grau de cavaleiro professo da Ordem de Cristo, em 1819. Em 23.7.1802, recebeu a propriedade vitalícia do Ofício de Escrivão das Fazendas dos Defuntos, Ausentes, Capelas e Resíduos, da Comarca de Sabará e, a 15.12.1802, a faculdade de nomear serventuário no mesmo ofício.

Tratado da educação fysica dos meninos para uso da naçaõ portugueza […], Lisboa, Officina da Academia Real das Sciencias, MDCCXC; Elementos de higiene ou ditames teóricos e práticos para conservar a saúde […], Lisboa, Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1814; “Contas das observações vaccnicas na instituição em Outubro”, Collecção de Opúsculos sobre a [...], III, Lisboa, Typografia da Academia, 1813, pp. 73-75; “Breve Instrucção do que ha mais essencial a respeito da vaccina”, Collecção de Opúsculos sobre a [...], III, Lisboa, Typografia da Academia, 1813, pp. 25-69; Catálogo dos livros do ilustre doutor Francisco de Mello Franco, Lisboa, 1815; Elementos de hygiene ou dictames theoreticos e practicos para conservar a saúde […], 2.ª edição, Lisboa, Typografia da Academia, 1819; “Historia da Academia Real das Sciencias de Lisboa para o anno de 1814: Discurso recitado na Sessão publica de 24 de Junho de 1816”, História da Academia Real das Sciencias de Lisboa, v. 5, pt. 1, Lisboa, Na Typografia da Mesma Academia, 1817, pp. I-XXIX; Elementos de hygiene ou dictames theoreticos e practicos para conservar a saúde […], 3.ª edição, Lisboa, Typografia da Academia, 1823; Ensaio sobre as febres […], Lisboa, Typografia da Academia, 1829.Processo Académico, AH-ACl, PT/ACL/ACL/C/001/1787-09-26/FMF; ANTT, Chancelaria de D. Maria I, liv. 66, fl. 343; ANTT, Chancelaria de D. Maria I, liv. 67, fl. 80; ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Maria I, liv. 20, fls. 63-63v; ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Maria I, liv. 28, fl. 351; ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, Inventário do réu Francisco de Melo Franco, proc. 106409; Carvalho, Augusto da Silva, Francisco de Melo Franco, Lisboa, 1947; Costa, Francisco Felix Pereira da, Resumo Histórico da Vida de Francisco de Mello Franco […], 1851; Jobim, José Martins da Cruz, Elogio histórico de Mello Franco, lido na sessão pública da sociedade de medicina do Rio de Janeiro a 24 de abril de 1831, Rio de Janeiro, Typographia Imperial de E. Seignot-Plancher, 1831; Freitas, Ricardo Cabral de, Os sentidos e as ideias: trajetória e concepções médicas de Francisco de Mello Franco na ilustração luso-brasileira (1776-1823), Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2017; Nunes, Rossana Agostinho, O cotidiano da libertinagem: discursos e práticas sobre a religião no mundo luso-brasileiro no final do século XVIII , tese de doutoramento, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2017; Varnhagen, Francisco Adolfo, “O Dr. Francisco de Mello Franco”, Revista do Instituto Histórico e Geographico do Brazil, vol. 5, 1843, pp. 367-373.Laurinda AbreuBrasileiraSócio substituto de efetivo.Ciências NaturaisSócio correspondente; livre: 30.1.1809; substituto de efetivo: 23.11.1812.