Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

DHB

AlmeidaFrancisco José de Lacerda eSão Paulo, BrasilCazembe, ZâmbiaMatemático, astrónomo, explorador do Brasil e da África. Sócio correspondente.ASS_Francisco-Jose-Lacerda-Almeida.png

Filho de José António de Lacerda, boticário, nascido em Leiria e de Francisca de Almeida, natural de S. Paulo. Tal como os filhos da elite brasileira da época, Almeida fez os seus estudos superiores na Universidade de Coimbra, onde se matriculou em 1772. No ano letivo de 1772/1773, frequentava já o primeiro ano de Matemática e o segundo de Filosofia. Em 1776, apresentou uma dissertação sobre o ensino da matemática, sendo aprovado Nimine Discrepante com o grau de doutor nessa disciplina. Em 1778 encontrava-se ao serviço do Estado e usava o título de «astrónomo de Sua Majestade». No ano seguinte, 1779, foi nomeado para fazer parte da comissão de demarcação dos limites do Mato Grosso com as possessões espanholas, de acordo com o Tratado de Santo Ildefonso de 1777.

A atividade científica de Almeida coincide com o terceiro quartel do século XVIII, em que as explorações geográficas e naturalistas atingem um elevado nível científico impulsionadas pelo poder inovador da ciência e apoiadas pelo interesse expansionista das potências europeias. Académicos, matemáticos, astrónomos, naturalistas, tornam-se exploradores científicos. Em Portugal, o sistema experimental e a nova interação das ciências foram implementados quer na Universidade de Coimbra, reformada pelo Marquês de Pombal (1772), quer na Academia das Ciências de Lisboa (1779) e na Sociedade Real Marítima (1798). Almeida esteve ligado, direta ou indiretamente, a estas três instituições de onde saíram os vulgarmente chamados naturalistas integrados nas missões científicas enviadas ao Brasil e à África.

Em março de 1782, Almeida já se encontra no Mato Grosso tendo até 1785 executado o reconhecimento dos rios Mamoré, Itomamas e Baures. Em 1786 explora a bacia do rio Paraguai, atingindo a vila de Cuiabá de que levanta a planta. Nesse mesmo ano e no de 1787, por ordem do governador Luís de Albuquerque de Melo Cáceres Monteiro, vai explorar os rios Guaporé, Barres, Branco, da Conceição, de S. Joaquim, IItomamas e Maxupi e visitar as missões de Santa Madalena, da Conceição e de S. Joaquim. Ao todo percorreu as capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá através dos principais rios da bacia amazónica.

Na Memória desta viagem apresentada à ACL, Almeida evidencia uma faceta pouco conhecida da sua cultura iluminista: a curiosidade pelo homem primitivo, essa “boa gente selvagem” que lhe “suscitou ideias de compaixão e respeito”. O diário está repleto de referências antropológicas às contradições do proselitismo cívico e religioso. Nas missões espanholas ele denuncia a forma de “castigar asperrimamente com acoites, com escuras prisões ou meter em troncos a estes chamados homens livres (…) um abuso geral, a fazer a felicidade de poucos indivíduos espanhóis à custa da infelicidade de centenas de índios” (Memória, fol. 3-4). A conclusão da Memória é um autêntico panfleto a favor da liberdade dos índios, dir-se-ia inspirado nas ideias de Voltaire. Segundo ele, estes homens têm um comportamento exemplar, são submissos, são pacientes, têm sangue-frio, aprendem facilmente as artes e a maior parte é inteligente. Mas não chegam a compreender “que entre eles e os escravos não há diferença real, como se pode inferir de quanto fica dito” (Memória, fol.7).

As relações entre os matemáticos demarcadores da fronteira degradaram-se, com queixas de Almeida sobre o colega Silva Pontes. O estilo de Almeida parece ter desagradado ao governador Luís de Albuquerque que o acusa de “orgulho escolástico”, “impertinência” e “descuido” (Múrias, pp.37-38) Possivelmente para sua defesa, Almeida oferece-se voluntariamente para fazer outra viagem desde Vila Bela à Vila e Praça de Santos, à sua custa. Tendo partido a 13 de setembro de 1788 do extremo oriental do Brasil, atingiu a costa, na cidade de S. Paulo, a 10 de janeiro do ano seguinte, tendo percorrido, em 112 dias, 648 léguas na sua maior parte através das vias fluviais. O Diário da viagem, de um grande rigor científico, regista não só as observações do geógrafo, mas também do naturalista, tais como a fauna, a flora, os recursos mineiros. Ao longo do itinerário, ocupa grande parte das noites fazendo observações astronómicas. A comissão de demarcação de fronteiras fora, entretanto, extinta, pelo que já não regressa a Mato Grosso. Em S. Paulo recebe ordem para regressar a Lisboa, onde chega a 21 de setembro de 1789. Ao oferecer o Diário e respetivo mapa à ACL, dirigindo-se aos académicos, Almeida lamenta, “com grande mágoa” não poder apresentar também um mapa geral das expedições, visto todos os seus papeis, deixados em Mato Grosso, terem sido extraviados pelos seus escravos. Também a Memória foi reescrita em Lisboa, sem o apoio dos apontamentos originais. O que explica a ausência das coordenadas dos lugares, nesse manuscrito.

Em 1791 foi provido a primeiro tenente do mar, e nomeado lente de Matemática da Real Academia dos Guardas Marinha. Atendendo às habilitações obtidas com distinção e aos serviços prestados no Brasil, é promovido a capitão de fragata da Armada Real, em 1795. Pela mesma época, terá sido condecorado cavaleiro da Ordem de Cristo. A eleição para correspondente da ACL teve lugar em 02.12.1795.

Em meados da década de 1790, o ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1796-1803) põe em estudo um “plano de ampliar e segurar o comércio de todos os domínios da Ásia portuguesa” (Coutinho, pp.115) que implicava uma nova via comercial: Goa, Moçambique, Africa central, Angola, Lisboa. O antigo projeto de ligação das duas costas de África, até então dependente de práticos do sertão, foi retomado. Para tão grande empreendimento exigia-se agora um cientista experiente, dotado de autoridade para executar a primeira travessia científica da África. A escolha recaiu sobre Almeida, nomeado para tal, governador de Rios de Sena na Zambézia. Em Lisboa muniu-se dos mais modernos instrumentos e livros destinados a observações astronómicas e medições exatas. No entanto, a urgência posta no assunto acabou por submeter a preparação da expedição geográfica a um plano económico delineado para o conjunto do império. As instruções, datadas de 12 de março de 1797, basearam-se em informações desatualizadas quer das realidades socioeconómicas das colónias africanas, quer dos conhecimentos sobre a hidrografia. Almeida partiu dois meses depois, com destino a Moçambique, encarregado de “sem perda de tempo, [fazer] todas as tentativas imagináveis para ver se no centro da África há montes que sirvam de vertentes ao grande rio Cunene (…)» (Travessia, p.77) no pressuposto errado de que o Cunene e o Zambeze teriam as suas nascentes próximas um do outro. Ele próprio considera a sua “partida precipitada, como se fez preciso”. (Ofício, p. 287).

Chegado a Moçambique não encontrou apoio, do governador nem informações dos moradores. Foi a chegada a Tete de uma embaixada do rei do Cazembe que veio revelar-lhe a existência de comunicações terrestres entre os dois grandes impérios, do Cazembe a oriente, e da Lunda, a ocidente. Era altura de refazer os planos da viagem. A 3 de Julho de 1798, vencidas várias resistências locais, a expedição põe-se em marcha em direção ao Cazembe. A malária e a pouca aptidão dos auxiliares causam-lhe as maiores apreensões. A sua única certeza são as observações astronómicas. Além das determinações de latitudes e variantes da agulha, obteve várias longitudes através da observação dos eclipses dos satélites de Júpiter registadas no mapa que elaborou. Foram estas as primeiras determinações da longitude no interior de África de que nos ficou registo. No princípio de outubro, já muito doente, chega â corte do Cazembe, nas margens do lago Moéro (entre a Zâmbia e a RDC), onde enceta negociações com o Muata, para que lhe fosse aberto o caminho para ocidente. Consegue ainda representar no mapa o itinerário do último dia da viagem. “[…] por agora fica-me a consolação de ser fraco geógrafo, porém dos mais verídicos, porque a mentira e a geografia, principalmente da América, Asia e África sunt due in carne una” (Travessia, p. 231). Falace no dia 18, prestes a atingir a região dos grandes lagos e das nascentes dos maiores rios da África austral. Nas tradições do Cazembe, a memória do Dr. Lacerda e Almeida ainda era venerada na segunda metade do século XIX. O Padre Francisco João Pinto, que devia substituí-lo, regressou a Tete. O diário, embora enviado a D. Rodrigo, ficou inédito até 1844-1845, data em que o Marquês de Sá da Bandeira o fez publicar nos Annaes Marítimos e Coloniaes a partir do número 8, quarta série. Desde logo constituiu uma revelação para os geógrafos estrangeiros. No entanto, quando Livingston, em 1857, divulgou, com grande repercussão na Europa, a sua travessia da África ignorou as contribuições portuguesas anteriores, o que levantou em Lisboa várias reações, como as de Sá da Bandeira (1861) e de José de Lacerda (1867). Nesse mesmo sentido, o diário foi traduzido e publicado, em 1873, pelo capitão Richard Burton, em Londres. Finalmente, na primeira metade do século XX, a historiografia portuguesa ocupou-se em dar a conhecer a figura e a obra de Almeida como precursor das grandes explorações científicas da segunda metade do século XIX na África austral.

Memória a respeito dos Rios Baures, Branco, da Conceição, de S. Joaquim, Itonomas,e Maxupo; e das três Missões da Madalena, da Conceição e de S. Joaquim, BACL, ms. Azul, 707; Diário da viagem que fiz desde Villa Bella, Capital de Mato Grosso até a Vª e Praça de Santos, BACL, ms. Azul, 998; “Explorações dos Portugueses no sertão D’África Meridional. Ofício do Doutor Francisco José de Lacerda e Almeida ao Ministro Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, datado de Tete, em 22 de Março de 1798”, Annaes Marítimos e Coloniaes, parte não oficial, nº7, 4ª série, 1844, pp.286-302; The lands of Cazembe. Lacerda’s journey to Cazembe in 1798, translated and annotated by Capitan Burton, London, John Murray,1873; Diário da viagem de Moçambique para rios de Senna, Lisboa, Imprensa Nacional,1889; Travessia da África, edição acrescida do diário da viagem de Moçambique para os Rios de Sena e do diário de regresso a Sena pelo Padre Francisco João Pinto com introdução crítica do Dr. Manuel Múrias, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1936. Processo académico, AH-ACl, PT/ACL/ACL/C/001/1795-12-02/FJLA; “Discurso de D. Rodrigo de Sousa Coutinho na inauguração da Sociedade Real Marítima, 22-Dez-1798”, in Funchal, Marquês do, O Conde de Linhares D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Lisboa, Typografia Bayard, 1908, pp. 105 e segs; COUTINHO, Gago, “Nota explicativa”, in Travessia da África pelo Dr. Lacerda e Almeida, Lisboa, Agência Geral das Colónias (AGC), 1927, pp.5-9; FONSECA, Quirino da, Um drama no sertão: tentativa de travessia da África em 1798, Famalicão, Tipografia Minerva, 1936; MÚRIAS, Manuel, “Introdução crítica”, Travessia da África pelo D. Lacerda e Almeida, Agência Geral das Colónias, Lisboa,1936, pp.9-75; EÇA, Filipe Gastão de Almeida de, Lacerda e Almeida, escravo do dever e mártir da ciência (1753-1798), Lisboa, Tipografia Severo Freitas Mega, 1951; SANTOS, Maria Emília Madeira, Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, Lisboa, Centro de Estudos de Cartografia Antiga, Junta de Investigações Científicas do Ultramar,1978; CARDOSO, José Luís, O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII. 1780-1808, Lisboa, Estampa, 1989; PEREIRA, Magnus de Mello, RIBAS, André Akamine, Francisco José de Lacerda e Almeida. Um astrónomo paulista no sertão africano, coleção ciência e império, vol. 2, Curitiba, UFPR, 2012. Maria Emília Madeira SantosBrasileiraSócio correspondente.Ciências naturais