Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

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GomesBernardino AntónioParedes de CouraMédico, botânico, químico. Sócio efetivo na classe de Ciências Naturais.A2.-Bernardino-Antonio-Gomes.pngBernardino António Gomes (1768-1823). Litografia de P. A. Serrano, 1857, Biblioteca Nacional de Portugal.A2-ass-Bernardino-Antonio-Gomes.png

Filho do médico José Manoel Gomes e de Josefa Maria Clara de Sousa, naturais de Coimbra. Matriculou-se na Universidade de Coimbra a 13.10.1784, concluindo o curso de medicina a 21.5.1793 (diploma de 18.6.1793).

Três meses após a obtenção do diploma de curso, Bernardino Gomes foi recrutado pela câmara municipal de Aveiro, em 11 de setembro de 1793, como médico do partido. Em 2 de fevereiro de 1795, a Chancelaria de D. Maria I registava a carta patente do referido cargo, e a 26 de fevereiro de 1798, novo registo da mesma chancelaria indicava que a câmara municipal de Sintra o havia “convocado” de Aveiro para exercer medicina, remunerando-o com 200 000 réis anuais. Para além das responsabilidades terapêuticas, incumbia-lhe apresentar um relatório anual acerca da qualidade das águas e das doenças que grassassem no distrito, assim como medidas preventivas, uma tarefa que se tornaria obrigatória para os médicos em 1812, mas que já estava a ser promovida pela Intendência-Geral da Polícia. Dado o habitual atraso das chancelarias em relação ao efetivo início da atividade, é plausível que Bernardino Gomes tenha mudado para Sintra entre finais de 1795 e inícios de 1796. No entanto, a sua permanência na localidade terá sido breve, pois, a 9 de janeiro de 1797, foi nomeado médico da Armada Real, com a posição de capitão de fragata.

Na qualidade de médico da armada, Bernardino Gomes desempenhou duas missões marítimas. A primeira, na esquadra que partiu para o Brasil em 16 de janeiro de 1797, regressando a Portugal em 1800. A segunda, entre 10 de abril de 1802 e 31 de março de 1803, na Esquadra do Estreito (de Gibraltar), com a incumbência de debelar a epidemia de tifo a bordo. Após controlar a epidemia, procurou incessantemente autorização para voltar a Lisboa o que ocorreria em 3 de março de 1803. A 20 de agosto, temendo o regresso ao mar, solicitou licença para continuar a trabalhar no Hospital Real da Marinha, ou, em alternativa, a sua demissão, alegando motivos de saúde e outros “muito ponderosos”, insinuando problemas conjugais (casara-se em 15 de outubro de 1801), problemas que se tornariam públicos a partir de 1805. Em abril de 1804, foi libertado “do serviço do mar emquanto a sua habitual moléstia o permitir”.

Em outubro de 1805, Bernardino Gomes deixava o hospital da Marinha e assumia, interinamente, por ordem do príncipe regente, o cargo de primeiro médico do hospital militar da corte, já em Xabregas, auferindo um vencimento de 500 mil réis. Em julho do ano seguinte, via confirmada a sua permanência no mesmo hospital, já sem a categoria de primeiro médico, mas mantendo o mesmo ordenado. As dificuldades de integração no meio castrense, a que não terão sido alheias as críticas constantes que fazia à formação dos seus cirurgiões, refletem-se novamente numa missiva (não assinada) datada de 13 de setembro de 1806, em resposta ao visconde da Anadia, na qual o remetente esclarece que Bernardino Gomes, embora estivesse a trabalhar no Hospital Militar, não pertencia aos seus quadros: era médico de esquadra, estando obrigado a embarcar sempre “que for necessário e se lhe ordenar”. No mesmo ano em que ingressa na Academia das Ciências (1810), recebe ordem (em julho) para tratar 445 doentes com tifo, em quarentena no lazareto da Trafaria. Considerando-a uma tarefa desrespeitosa do seu percurso, apresenta a sua demissão em 22 de setembro de 1810, após a conclusão do tratamento. Passou então a exercer medicina privada. Contrariado, regressou ao mar em 1817 e 1818 para acompanhar a princesa real na viagem desde Livorno até à corte do Rio de Janeiro e, posteriormente, a comitiva austríaca ao seu país, mas agora na condição de médico da Câmara Real.

Quando se demitiu da armada, Bernardino Gomes já havia elaborado quatro obras científicas – três médico-botânicas (Memória sobre a Ipecacuanha; Observações botânico-médicas; Memória sobre a canela) e outra estritamente sobre medicina (Método de curar o tifo) –, todas elas conformes aos preceitos do método científico, princípios que continuaria a seguir em mais de uma dezena de novos textos redigidos até à sua morte, a maioria publicada pela Academia das Ciências. Apesar de reconhecer a importância do conhecimento teórico especializado, essencial para compreender os princípios fundamentais da medicina, defende a prática clínica como meio de desenvolver o conhecimento e tornar as abordagens terapêuticas mais eficazes.

A interação dinâmica da teoria com situações clínicas da vida real acompanhará todo o seu percurso profissional. A literatura fornece-lhe o contexto para o estudo, seguido pela recolha controlada de dados (por exemplo, referentes a seis pacientes dos mais de 200 infetados com tifo ou os 14 casos analisados na Memória sobre a virtude tœnifuga da romeira (1822)). As suas observações são registadas de forma objetiva, um procedimento que pode ser seguido nos manuscritos que deixou relativos à sua prática clínica. Adicionalmente, apresenta o método de análise de modo a que as conclusões possam vir a ser confirmadas ou refutadas. Nesta prática, alinha-se com os autores que admira, como quando replica na Esquadra do Estreito o método de refrigeração no tratamento das febres de origem infeciosa, desenvolvido pelo médico inglês James Currie, ou rejeita as hipóteses formuladas por Andrew Duncan e Louis-Nicolas Vauquelin acerca da cinchonina. Ou ainda quando concorda com o princípio, mas discorda do meio de o concretizar, como sucede com a teoria de Louis-Bernard Guyton-Morveau sobre a desinfeção das cartas sem as abrir, na sua Memória sobre a desinfeção das cartas, de 1814, elaborada no âmbito do seu trabalho como membro da Junta da Saúde, para a qual foi eleito em 28.8.1813. Autocrítico, exorta os seus pares a aprofundarem as suas pesquisas, mormente sobre a elefantíase (Carta aos médicos sobre a elefantíase, 1821), texto que surge na sequência do Ensaio dermosográfico (elaborado em 1817 e publicado em 1820), considerado o primeiro tratado sobre dermatologia em Portugal. Os seus métodos de trabalho granjear-lhe-iam reconhecimento internacional – por exemplo, James Currie mencionará os seus estudos sobre o tifo a partir da 3.ª edição dos Medical Reports – e ligá-lo-iam ao avanço da ciência, particularmente no caso do isolamento da cinchonina, identificado pelos farmacêuticos Joseph Pelletier e Joseph-Bienaimé Caventou como uma base orgânica, um alcaloide da quina (perdendo a designação no masculino). A descoberta da quinina, em 1820, teve um elevado impacto na saúde pública, perpetuando assim o nome de Bernardino Gomes.

O surgimento de novos dados entre a primeira versão de um artigo e a sua publicação leva-o a assinalar emendas ou a juntar apêndices ao texto original, como aconteceu no seu estudo sobre a canela, apresentado em 1798 e publicado em 1809. No caso mais conhecido, relacionado com as ipecacuanhas, solicitou o apoio de Félix de Avelar Brotero, o qual efetuou algumas correções e traduziu a informação essencial para latim, originando um equívoco sobre a autoria do estudo por parte dos professores franceses Julien-Joseph Virey e François-Pierre Chaumeton. Bernardino Gomes apressou-se a esclarecer as imprecisões notadas, sendo por eles prontamente corrigidas no Dictionnaire des Sciences Médicales. Este episódio acentuará a consciência de que a escrita em português constituía um entrave à disseminação da sua obra. Por conseguinte, empenhar-se-á em torná-la conhecida no estrangeiro, seja através da correspondência que mantém com os seus pares, os quais a vão difundindo nos diversos fóruns em que atuam, seja por meio de traduções, como foi o caso com as suas descobertas sobre a quina, no Edinburgh Medical and Surgical Journal, em 1811 (traduzidas, indica o texto, do terceiro volume das Memórias da Academia das Ciências), ainda antes da publicação em língua portuguesa, que só adviria no ano seguinte, quando foi republicado no Medical and Physical Journal.

Uma parte da comunidade científica nacional, representada por José Feliciano de Castilho e demais médicos redatores do Jornal de Coimbra que, entre 1812 e 1819, punham em causa a sua descoberta sobre a cinchonina, considerava que publicar no estrangeiro denotava vaidade pessoal e anseio por reconhecimento público. A Memória sobre o cinchonino foi a primeira que leu na Academia das Ciências a 7 de julho de 1810.

O ingresso de Bernardino Gomes na Academia das Ciências (7.1.1810) ocorreu num contexto de fortalecimento da presença médica nas classes das ciências. Em 6 de junho de 1812, ascendeu à categoria de sócio livre (ou supranumerário) e, a 19 do mesmo mês, a sócio substituto de efetivo. Em 23 de dezembro, foi eleito diretor da classe de Ciências Naturais. Conquistou a condição de sócio efetivo a 1 de dezembro de 1814, sendo posteriormente reeleito diretor da classe de Ciências Naturais em 1821.

Dos diversos trabalhos desenvolvidos no âmbito da Academia, ou sob o seu enquadramento institucional, evidenciam-se dois, por razões diferentes: o referente às quinas e a Instituição Vacínica. Como mencionado, o primeiro texto abordou os estudos sobre as quinas, iniciados por ordem governamental no hospital militar em 1804. Estes estudos prosseguiam as investigações que estavam em curso em Portugal desde a década de 1780 (e também em França), com o intuito de acabar com a dependência da quina peruviana, monopólio espanhol. Bernardino Gomes afirmava ter isolado a cinchonina nas cascas das quinas de Minas Gerais e de Camamu, reconhecendo-lhes propriedades terapêuticas febrífugas; acrescentava não a ter encontrado nas quinas do Rio de Janeiro.

Por duvidar da conclusão ou almejar um consenso abrangente sobre o tema, o Governo, em 22 de maio de 1811, solicitou à Academia a realização de novas análises, estabelecendo-se para tal uma comissão da qual Bernardino Gomes faria parte. Apesar de não ter participado nos trabalhos, conforme esclarece no Investigador Portuguez em Inglaterra, manteve a sua associação nominal à comissão, que concluiu pela existência de cinchonina nas quinas do Rio de Janeiro. Esta discrepância foi explorada pelo Jornal de Coimbra, que tinha ligações ao diretor do Laboratório Químico e professor na Universidade de Coimbra, Tomé Rodrigues Sobral, a quem foram pedidas análises semelhantes em 1811 e 1813, e que sustentava opiniões divergentes das de Bernardino Gomes. Este imbróglio foi ampliado pela publicação, em 1812, pela Academia do Ensaio sobre o Cinchonino e pela recusa da instituição em incluir as discordâncias de Bernardino Gomes na publicação, em 1814, das Experiencias Chymicas sobre a quina do Rio de Janeiro, que apresentava os resultados da referida comissão. Polémicas que, todavia, não prejudicaram a projeção internacional da sua descoberta.

Sorte distinta teve a Instituição Vacínica, erigida por proposta de Bernardino Gomes em 1812, da qual foi o seu primeiro diretor e também o arquiteto do seu enquadramento normativo.

A 8 de abril de 1812, a Academia assume o desígnio da vacinação gratuita, entregando-o aos seus membros médicos, que, mensalmente, analisam os resultados, propõem adaptações e melhoram os processos, apresentando-os publicamente a cada três meses. Ao contrário do que acontecera nos finais do século XVIII, procura-se agora mobilizar a sociedade, através da figura de “correspondentes”, que incluem agentes de saúde e autoridades locais e centrais, membros da Igreja e grupos mais proeminentes, onde sobressaem as mulheres, como era comum à época. Registos de tudo isto foram sendo publicados pela Academia, salientando-se, da autoria de Bernardino Gomes, a Recopilação histórica (1814), um relatório analítico, crítico e prospetivo apresentado em junho de 1813, e Conta Anual, de 1815, onde discorre sobre a importância da vacinação num país com “excessiva falta de população”, colónias incluídas. Apesar de os resultados terem ficado aquém do desejado, em parte devido à insuficiência de financiamento, o programa de vacinação realizado por uma academia de ciências destacou-se singularmente na Europa.

Durante a sua vida, Bernardino Gomes, para além dos vários cargos que ocupou obteve ainda algumas mercês como reconhecimento dos seus serviços: médico honorário da Câmara Real, a 8.7.1813 (Rio de Janeiro), cavaleiro fidalgo em 7.3.1815, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, a 19.6.1815 e fidalgo Cavaleiro a 18.4.1818.

Memória sobre a Ipecacuanha Fusca do Brasil ou Cipó das Nossas Boticas, Lisboa, Typographia do Arco do Cego, 1801; Método de curar o Tifo [...], Lisboa, Typographia da Academia R. das Sciencias, 1806; “Observações Botânico-Médicas sobre Algumas Plantas do Brasil, Escriptas em Latim e Portuguez, [...], Memorias de Mathematica e Physica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, III, 1, Lisboa, Typographia da Academia, tomo 3, parte 1.ª, 1812, pp. 1-104; “Conta dada na Congregação dos Membros da Instituição Vacínica da Academia Real das Ciências em 15 de Outubro de 1812”, Collecção de Opúsculos sobre a [...], I e II, Lisboa, Typografia da Academia, 1812; “Conta dada na Congregação dos membros da Instituição Vaccinica da Academia Real das Sciencias”, Collecção de Opusculos, II, pp. 19-24; “An Essay upon Cinchonin, and its influence upon the virtue of Peruvian Bark, and other Barks”, The Edinburgh Medical and Surgical Journal, 17, 1811, pp. 420-431; “Essay upon Cinchonin, and its Influence upon the Virtue of Peruvian Bark, and other Barks”, Medical and Physical Journal, 1812 Apr, 27(158), pp. 295-312; “Ensaio sobre o Chinchonino e sobre a sua Influência na Virtude da quina e Doutras Cascas”, Memorias de Mathematica e Physica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, III, 1, Lisboa, Typografia da Academia, 1812, pp. 202-217; “Recopilação Historica dos trabalhos da Instituição Vacínica durante o seu primeiro anno”, Memorias de Mathematica e Physica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, III, 2, Lisboa, Typografia da Academia, 1814, pp. LXXVI-XCIX; “Memória Sobre a Desinfecção das Cartas”, História e Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, IV, I, Lisboa, Typografia da Academia, 1815, pp. 36-57; “Memória sobre as Boubas”, História e Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, V, I, Lisboa, Typografia da Academia, 1815, pp. 1-35; “Conta Annual da Instituição Vaccinica da Academia Real das Sciencias de Lisboa pronunciada na Sessão Publica de 1815”, História e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, IV, II, Lisboa, Na Typografia da Academia, 1815, pp. XXVII-XLIX; Ensaio Dermosográfico [...], Lisboa, Typographia da Academia, 1820; Memória sobre os Meios de Diminuir a Elefantíase em Portugal e de aperfeiçoar o Conhecimento e a Cura das Doenças Cutâneas, [...], Lisboa, Officina de J. F. Monteiro de Campos, 1821; Carta aos Médicos Portuguezes sobre a Elephantíase [...], Lisboa, Imprensa Nacional, 1821; Memória sobre a Virtude Tœnifuga da Romeira, [...], Lisboa, Na Typ. da Academia Real das Sciencias, 1822.Processo Académico, AH-ACl, PT/ACL/ACL/C/001/1810-01-07/BAG; ANTT, Chancelaria de D. Maria I: liv. 15, fls. 192-192v; liv. 48, fls. 143-143v; liv. 55, fls. 110-110v; ANTT, Hospital de S. José, liv. 2242, fl. 54; ANTT, Ministério do Reino, PT/TT/MR/EXP/051/0043/00005; mç. 686, proc. 5; Arquivo Geral da Marinha, caixa – 797 – 3 – 4, 1793 a 1857: Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ms. Av. LXVI, nº 86; Gomes, Bernardino António, Noticia da vida e trabalhos scientificos do medico Bernardino Antonio Gomes, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1857; Machado, Virgílio, O Doutor Bernardino António Gomes (1768-1823): a sua Vida e a sua Obra, Lisboa, Portugália Editora, 1925; Simões, Manuela Lobo da Costa, Um Divórcio na Lisboa Oitocentista, Lisboa, Livros Horizonte, 2006; Silva, José́ Alberto, A Academia Real das Ciências de Lisboa (1779-1834): ciências e hibridismo numa periferia europeia (tese de doutoramento), Universidade de Lisboa, 2015; Subtil, Carlos, Bernardino António Gomes: ilustre médico iluminista nascido em Paredes de Coura, Maia, Sersilito, 2017; Semedo, Maria Guilherme, Bernardino António Gomes (1768-1823): a quina e o isolamento da cinchonina, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2020.Laurinda AbreuPortuguesaSócio efetivoCiências NaturaisSócio correspondente: 7.6.1810; sócio livre: 6.6.1812; substituto de efetivo: 19.6.1812; sócio efetivo: 1.12.1814. Membro fundador da Instituição Vacínica.