Dicionário Histórico-Biográfico da Academia das Ciências de Lisboa

DHB

FerreiraAlexandre RodriguesSalvador (Baía)LisboaNaturalista, sócio livre na classe de Ciências Naturais.Ass-Alexandre-Roriz-Ferreira.png

Era filho de Manuel Rodrigues Ferreira, abastado comerciante da cidade de Salvador. Casou-se em 1792 com D. Germana Pereira da Cunha e Queiróz, filha do capitão Luís Pereira da Cunha. Deste casamento nasceu um filho, Germano Alexandre Queiróz Ferreira, e duas filhas.

Alexandre Rodrigues Ferreira tomou as ordens menores no Convento das Mercês, em Salvador, a 20 de setembro de 1768. Em outubro de 1770, com 14 anos, viajou para o reino e matriculou-se na UC, na cadeira de Instituta. Depois da reforma pombalina da Universidade (1772), registou-se em Leis (1773), Matemática (1775) e no Curso Filosófico (1774), onde cursou cadeiras de Filosofia Racional, Moral e Natural (Lógica, Metafisica, Ética, História Natural, Física Experimental e Química). Por dois anos foi demonstrador de História Natural. Fez o exame privado a 15 de dezembro de 1778 e a 10 de janeiro do ano seguinte recebeu as insígnias doutorais de seu padrinho, o naturalista bolonhês e lente na UC, Domingos Vandelli.

Em 1778, Ferreira foi chamado a Lisboa com o propósito de participar num vasto programa científico e político-económico destinado a alterar, junto da Coroa e dos vassalos, a representação do império colonial, tornando-a menos abstrata. Idealizado por Vandelli, este plano concebia a realização de grandes expedições científicas às colónias como forma de as integrar e fortalecer as suas ligações à metrópole e de reabilitar o prestígio político e económico do reino através do conhecimento científico e da identificação racional das potencialidades naturais e industriais destes territórios. Durante os cinco anos seguintes, o naturalista aperfeiçoou a vertente prática da sua profissão, através da execução, inventariação e estudo das coleções do Real Gabinete da Ajuda e da realização, com outros naturalistas em formação, de expedições às minas de carvão de pedra de Buarcos (novembro de 1778) e às regiões do Ribatejo (1781) e de Setúbal (1783). Em agosto de 1783, Ferreira dava início a uma Viagem Filosófica que se distingue das outras expedições científicas que, no mesmo período, foram realizadas a Angola, Goa, Moçambique e Cabo Verde. A viagem executada pelo naturalista destacava-se porque era realizada a um espaço que, neste período, tinha relevância a nível externo e interno. De facto, após 1750, o Norte da América portuguesa conhecera profundas reformas políticas e grandes alterações sociais, para além de estar abrangido pelo processo negocial de demarcação de fronteiras com a América Espanhola. Havia, contudo, outros fatores que diferenciavam esta expedição, considerada por W.J. Simon como a mais bem planeada pela Coroa, tais como: a equipa constituída e a sua dedicação à missão que desempenhava; a multiplicidade de interesses que eram objeto da observação, descrição e análise do naturalista; o apoio logístico e os recursos financeiros dados por governadores, instituições e agentes da Coroa, que viabilizavam e controlavam a viagem; a longa duração e a imensidão do percurso. A equipa era inicialmente constituída por Ferreira, pelo jardineiro-botânico Agostinho Joaquim do Cabo, pelos riscadores Joaquim José Codina e José Joaquim Freire e pelo criado José Ferreira Jorge. Em Belém incorporar-se-iam os preparadores indígenas José da Silva e Cipriano de Sousa e um número variável de colaboradores informais (remeiros, guias, intérpretes, soldados, etc.). Entre 1783 e 1792 os viajantes percorreram as capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (c. 39 000 Km) com o objetivo de contribuir para o aumento do conhecimento geográfico, natural, humano e para o controlo político que a Coroa tinha destes espaços coloniais periféricos. O naturalista aportou em Belém em outubro de 1783 e deu início à exploração das capitanias do Pará e S. José do Rio Negro. Considera-se comummente que a atividade de Ferreira nesta imensa área geográfica é melhor conhecida e mais estudada, porque passou mais tempo nestas capitanias, coletou um riquíssimo acervo científico-natural e antropológico e escreveu inúmeras participações, diários e memórias, que abordam temas relacionados com geografia, história, economia, conflitos diplomáticos, comunidades indígenas, medicina, agricultura, presença colonial, navegação, produções naturais e demografia de que a Viagem filosófica ao Rio Negro é um exemplo. Teria iniciado esta atuação com pequenas incursões científicas aos arredores de Belém e à ilha do Marajó. Em janeiro de 1784, na companhia do governador e capitão-general Martinho de Sousa e Albuquerque e do governador da fortaleza de Macapá João Vasco Manuel de Braun, explorou o rio Tocantins. Fez uma excursão a Cametá e visitou a fortaleza de Alcobaça. Regressou à capital para, em outubro desse ano, iniciar um périplo que o levaria ao interior da Amazónia: aos rios Amazonas, Moju, Negro, Branco, à Serra dos Cristais. Ao longo do trajeto, reconheceu, descreveu e mandou desenhar os principais núcleos de povoamento e fortificações, as produções naturais, os indígenas e as suas comunidades, as manufaturas. O outro grande trecho da viagem filosófica é definido pela exploração das capitanias de Mato Grosso e Cuiabá, que o naturalista examinou entre 1788 e 1791. Esta parte da viagem é considerada por alguns estudiosos como sendo menos conhecida que a anterior, em parte porque a produção do naturalista foi menor, embora de grande relevância científica. À época, também a capitania de Mato Grosso era considerada como uma região com enorme relevância para a Coroa: devido à sua imensa e nem sempre controlada extensão, às riquezas associadas às lavras auríferas e diamantíferas e à disputa de territórios e populações numa dinâmica de negociação de limites coloniais com o vice-reinado do Peru. Ganham importância as observações mineralógicas feitas pelo naturalista numa altura em que era evidente o declínio da produção mineradora; tal como adquirem destaque os registos sobre a ocupação humana em regiões onde o direito de uti possidetis legitimava a posse de territórios disputados com os hispano-americanos. Depois de percorrer os rios Madeira, Mamoré e Guaporé e trajetos encachoeirados e doentios que eram bem conhecidos, mas de navegação difícil, demorada e perigosa, Ferreira chegou a Vila Bela da Santíssima Trindade em outubro de 1790. Durante os períodos de permanência na capital, escreveu importantes memórias científicas (“Observações gerais sobre a classe dos mamíferos”; “Enfermidades endémicas da capitania de Mato Grosso”). Realizou incursões que o levaram à Serra de São Vicente e aos seus arraiais auríferos. Navegou pelos rios Cuiabá, S. Lourenço, Paraguai e Jauru; visitou a cidade de Cuiabá e o presidio de Nova Coimbra; explorou as grutas do Inferno e das Onças; recolheu amostras mineralógicas (ouro, mármores, ágatas, calcários negros), destinadas a integrar as coleções reais. Regressou a Vila Bela (1791) para empreender a viagem de regresso a Belém, onde aportou a 12 de janeiro de 1792. A chegada a Lisboa deu-se em janeiro do ano seguinte.

De volta ao reino, Ferreira foi-se inserindo na burocracia da corte. Recebeu mercê de residência fixa e outros benefícios relacionados com o exercício de cargos prestigiantes, uma forma institucional de reconhecer e recompensar os serviços que o naturalista tinha prestado à Coroa. Foi vogal das Juntas da Fazenda e da Justiça do Pará (1792), oficial da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos (1793-95), agraciado com o hábito da Ordem de Cristo (julho de 1794), administrador interino do Real Jardim Botânico da Ajuda (setembro de 1784), administrador (junho de 1785), vice-diretor e tesoureiro do cofre do Real Jardim Botânico e do Laboratório Químico, Museu e Casa do Risco da Ajuda (setembro de 1795 até 1811), inspetor e administrador das Reais Quintas de Queluz, Caxias e Bemposta (dezembro de 1795), deputado da Real Junta do Comércio (dezembro de 1795).

Alexandre Rodrigues Ferreira ingressou como sócio correspondente da ACL a 22 de maio de 1780, recomendado pelo duque de Lafões. Até 1783, altura em que partiu para o Pará, participou em várias sessões da ACL. Proferiu três alocuções (sobre o aumento e regulação das matas de Portugal, sobre o abuso da conchiologia em Lisboa e acerca do exame de uma planta medicinal vendida pelo cirurgião-mor do Regimento de Cavalaria de Alcântara). Foi eleito sócio efetivo a 30 de janeiro de 1789.

A Viagem Filosófica está associada à produção de diários de viagem, relatos, memórias, notícias, relações, observações, descrições, ofícios, mapas, cartas geográficas, prospetos, desenhos e esquissos, coleções de objetos e espécies (ex: herbário, peixes) que constituem fontes de informação sem precedente sobre a Natureza e a Humanidade das áreas percorridas. A equipa do naturalista recolheu, classificou, preparou e enviou espécimenes animais, vegetais, minerais e artefactos, dirigidos às instituições de governação e ciência do reino. As amostras eram acondicionadas em caixas, barris, gaiolas, frasqueiras, enviadas de vários locais do trajeto, por via fluvial, terrestre e marítima, para Belém e daí para Lisboa e Coimbra. Após a morte de Ferreira, em 1815, o espólio do naturalista, depositado no Real Gabinete e Jardim Botânico da Ajuda, foi inventariado por António de Azevedo Coutinho. O catálogo fazia referência a 57 obras atribuídas à viagem filosófica, 17 que não pertenciam à viagem e 29 sem nome, mas atribuíveis a Ferreira. Em 1838 este núcleo documental foi transferido para a ACL, sendo considerado por Costa e Sá, responsável pela comissão avaliadora da ACL, como de importância científica, económica e política para o Brasil e Portugal.

A Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira representa a diversidade da natureza, sociedades e culturas da América portuguesa e constitui um contributo irrefutável para a ciência e para o património científico universal. Não obstante, os textos, imagens e objetos ficaram, por longo período, inéditos e desconhecidos. Em diferentes períodos e devido a múltiplas causas, foram dispersos por várias instituições e por diversos países europeus e americanos. Continuam a ser decisivos para que cientistas das mais diversas áreas estudem o que foi, como se fazia e o que significou a ciência do Iluminismo em Portugal. De igual modo, são incontornáveis para o conhecimento científico do que foram, e são, o ambiente, as comunidades indígenas, os espécimenes, a presença colonial nos territórios da Amazónia e da região Centro-Oeste brasileira.

Em 2010, o acervo foi considerado como “legado do passado para a comunidade mundial presente e futura” e obteve o registo de “memória do Mundo” da UNESCO. Apesar de continuar disperso por instituições portuguesas, brasileiras, francesas, tem sido disponibilizado à comunidade científica e à sociedade através de coleções, livros, sites, portais eletrónicos, que reúnem virtualmente a informação dispersa e permitem o seu acesso, estudo, preservação e valorização. O Museu Maynense detém e expõe uma parte significativa e valiosa da Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira que continua a ser da maior relevância para a história, etnologia, antropologia, ciências naturais, biologia.

O seu elogio histórico foi recitado por Manuel José Maria da Costa e Sá e publicado nas História e Memórias da Academia, em 1818.

“Propriedade e posse das terras do Cabo do Norte pela coroa de Portugal”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 3, 1841, 389-421; “Viagem à gruta das Onças”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 12, 1849, 87-95; “Gruta do Inferno. Descrição feita pelo Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, em Cuiabá (1789)”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 4, 1863, 363-367; O Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira. Documentos coligidos e prefaciados por Américo Pires de Lima, Lisboa, Agência Geral de Ultramar, 1953; Viagem filosófica (Iconografia), 2 vols. Conselho Federal de Cultura, 1971; Viagem filosófica: Memórias (Zoologia e botânica), Conselho Federal de Cultura, 1972; Viagem filosófica: Memórias (Antropologia), Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1974; “História filosófica e política do rio da Madeira”, in Ferrão, C. e Soares, J. P. M., (org.), Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira, Vol. III, Petrópolis, Kapa Editorial, 2007; Santos, F. J., Ugarte, A. S., e Oliveira, M. C. (org.),Viagem filosófica ao Rio Negro, Manaus, Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007; Porto, Ângela (org.), Enfermidades endémicas da capitania de Mato Grosso. A memória de Alexandre Rodrigues Ferreira, Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2008.Processo académico, PT/ACL/ACL/C/001/1780-05-22/ARF; Sá, Manuel José Maria da Costa e, “Elogio histórico do Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira”, História e Memórias da Academia Real das Sciencias, tomo V, parte II, Lisboa, 1818, pp. LVI – LXXXVII; Simon, William J., Scientific expeditions in the Portuguese territories (1783-1808) and the role of Lisbon in the intellectual-scientific community of the late eighteenth century, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical,1983; Costa, Maria de Fátima, “Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania do Mato Grosso: imagens do interior”, História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 2001, 993-1014; Coelho, Mauro Cezar, “A civilização da Amazónia. Alexandre Rodrigues Ferreira e o Diretório dos índios: a educação de indígenas e luso-brasileiros pela ótica do trabalho”, Revista de História Regional, v. 5 (2), 2007, 149-175; Raminelli, Ronald, Viagens ultramarinas: Monarcas, vassalos e governo à distância, São Paulo, Alameda, 2009; Carvalho, Jr. Almir Diniz. Tapuia, “A invenção do índio da Amazónia nos relatos da viagem filosófica (1783-1792)”, in Carvalho Jr., Almir Diniz de Carvalho, e Noronha, Nelson Matos de (org.), A Amazónia dos viajantes. História e ciência, Manaus, Universidade Federal do Amazonas, 2011, 33-103; Safier, Neil, “Masked observers and mask collectors: entangled visions from the eighteenth-century Amazon”, Colonial Latin American Review, 26:1, 2017, 104-130; Ferreira, Breno Ferraz Leal, “A compreensão dos povos indígenas da América portuguesa por Alexandre Rodrigues Ferreira durante a Viagem Filosófica (1783-1792): a apropriação de uma tradução francesa de The History of America (1777), de William Robertson”, Revista de Índias, LXXX/280, 2020, 719-750; Morgan, Muriel, “Viajeros ilustrados y la disputa del Nuevo Mundo: Alexandre Rodrigues Ferreira e Tadeo Haenke ante el hombre americano”, Prohistoria, año XXIII, núm. 34, 2020, 131-158; Domingues, Ângela, “No trilho da viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira: uma breve história das suas coleções e sua disseminação”, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 16 (3), 2021, 1-15; Domingues, Ângela e Melo, Patrícia Alves. “Iluminismo no mundo luso-brasileiro: um olhar sobre a Viagem Filosófica à Amazónia, 1783-1792”, Ler História 78, 2021, 157-178; Pataca, Ermelinda Moutinho, “As drogas e os sertões: investigações sobre as mercadorias na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira”, in Chambouleyron, Rafael (org.), As Drogas do Sertão e a Amazônia Colonial Portuguesa, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2023, 375-426; Ferreira, Breno Leal, “Alexandre Rodrigues Ferreira: as estratégias narrativas das «Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais (1790)»”, História (São Paulo), v. 42, 2023, 1-24.Ângela Domingues (FLUL/CH-ULisboa) BrasileiraSócio correspondente; livre: 30.1.1789.